Depois da última homenagem que este ano ainda lhe foi feita, na Gulbenkian, decidi lê-lo. A curiosidade era enorme, sobretudo porque tantas figuras de primeiro plano na cena intelectual portuguesa o descrevem como dos poucos à altura dos autores clássicos. Refiro-me a Vasco Graça Moura: ensaísta, romancista, poeta, dramaturgo, tradutor de clássicos e cronista, com formação jurídica, vocação política e responsabilidades de topo na gestão cultural. Comecei, calmamente, por um dos trabalhos mais recentes: A Identidade Cultural Europeia. Num ensaio breve mas muito completo e esclarecedor sobre a Europa e a sua identidade cultural, Vasco Graça Moura (cuja partida em abril deste ano traduziu uma perda incomensurável no panorama intelectual português) começa por dizer que a identidade cultural europeia não é estanque e imobilizada. Descreve-a como um processo em curso e em permanente mudança. Neste seu trabalho publicado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos em novembro de 2013, Vasco Graça Moura identifica uns quantos movimentos, como os Encontros Internacionais de Genebra e o Movimento Europeu, por exemplo, que, nascidos na segunda metade da década de 1940, constituíram uma consciência muito apurada do valor identitário da Europa. No fundo, gerou-se entre e a partir deles a perceção de que «(…) a Europa reunia um conjunto de características de ordem espiritual, racional, científica e humanística, cuja combinação a distinguia dos outros continentes». Mais tarde, com a formação da Comunidade Económica Europeia, à qual o autor atribui «excelentes resultados», a realidade europeia foi-se transformando profundamente até chegar ao tempo da globalização e da expansão tecnológica. Na Europa hoje alargada a 28, o autor identifica mais uma preponderância das dissonâncias e menos uma séria união alicerçada em «políticas comuns, concertadas e úteis». À procura da identidade da cultura europeia, Vasco Graça Moura vai à raiz e identifica dois eixos fundamentais: os modelos clássicos gregos e latinos (tradição judaico-cristã) e a inspiração milenar bíblica. Decorre daqui, com efeito, a importância incontornável dos poemas homéricos e da tragédia grega, a Alegoria da Caverna e a República de Platão. E, a estes «momentos fundadores», o autor junta os «momentos continuadores» da identidade europeia: Renascimento, Reforma, Século das Luzes, Revolução, nacionalismos, imperialismos… De acordo com o ensaísta, foi com esta herança cultural e esta cosmovisão que a Europa se transmitiu e exportou para os restantes continentes. E, hoje, embora relegando para um plano completamente secundário o valor da religião, a Europa continua a praticar ainda assim «os valores de humanidade que a mensagem cristã propugnou». A divinização foi deslocada para o próprio indivíduo e a preponderância do humano/terreno. Pelo caminho tiveram os Descobrimentos o mérito de apresentar à Europa uma nova epistemologia por contraponto ao saber dos antigos. Na agenda foram sendo introduzidos o Século das Luzes, a Revolução Francesa, a Declaração Universal dos Direitos do Homem, as Guerras Mundiais, a Revolução Russa, a queda do Muro do Berlim, a União Europeia… que nos fazem pensar que nenhum dos pressupostos basilares da matriz identitária da Europa se mantém incólume. Na mesma medida em que, defende o autor, «(…) depois do Ulisses de James Joyce nunca mais pudemos ler a Odisseia da mesma maneira (…)».
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