Corria o mês de maio de 2010 quando, numa das charmosas esplanadas da Vila Madalena, em São Paulo, me encontrava a beber café com uns amigos brasileiros de generosa cultura geral. Às mil perguntas que lhes fiz sobre as diferentes expressões da cultura brasileira, disseram-me com assaz convicção que é a cantar (leia-se: nas letras das músicas) que o brasileiro melhor se expressa e transmite a sua identidade. Fiquei a pensar naquilo…

Como ali todos gostávamos de ler, pelo meio da conversa, surgiram os livros. Claro! Apressaram-se a perguntar-me, sem recato, que autores brasileiros já havia lido. Falei-lhes do popular Jorge Amado, do eterno Vinicius de Moraes e do polivalente Chico Buarque. Mas foi de Clarice Lispector (que não tinha ainda lido, mas cuja biografia conhecia bem) que lhes falei com alma.

A origem ucraniana, o sentido de pertença ao Brasil, o percurso diplomático a reboque do marido, a carreira jornalística, a escrita intimista que agitou a literatura brasileira (contrastando, por exemplo, com o realismo de Jorge Amado), a beleza tão pouco convencional, enfim… Uma mão-cheia de argumentos despertaram a minha curiosidade, embora a leitura da sua obra tenha vindo a ser ultrapassada por outros títulos, outras vontades. Há meia dúzia de dias, porém, li pela primeira vez Clarice Lispector. Comecei por um dos livros preferidos da própria autora: A Paixão segundo G.H..

Uma mulher bem-sucedida profissionalmente lança-se na procura existencial da sua própria identidade que as iniciais do seu nome – G.H. – não só não deixam antever, como podem referir-se a um qualquer ser. Sem critério. A narrativa é anódina e conta-se em poucas palavras: depois de demitir uma empregada doméstica interna, G.H. entra no quarto que a mesma ocupava para iniciar uma limpeza de fundo e defronta-se com uma barata, que acaba por esmagar e… comer. Só aí encontra uma razão de viver. Ora, Clarice Lispector transforma esta trama narrativa simples e aparentemente pobre numa profundíssima reflexão existencial, inspirada no existencialismo de Jean-Paul Sartre.


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Num estilo bem direto, Clarice Lispector começa antes de iniciar a narrativa por se dirigir aos seus leitores: «Este livro é como um livro qualquer. Mas eu ficaria contente se fosse lido apenas por pessoas de alma já formada». E nestas palavras posiciona tudo o que serve a seguir: uma escrita extraordinariamente intimista e incentivadora da reflexão interior (de que tantos, tantas vezes, fogem…). As palavras de ordem que espreitam logo nas primeiras páginas – escondidas, não literais – são a estabilidade e a segurança que, por vezes, surgem impeditivas do arrojo e do risco e da coragem: «Perdi alguma coisa que me era essencial, e que já não me é mais. Não me é necessária, assim como se eu tivesse perdido uma terceira perna que até então me impossibilitava de andar mas que fazia de mim um tripé estável». Avança com uma questão existencial, referindo-se ao desconforto/descontrolo que o desentendimento traz: «(…) quero sempre ter a garantia de pelo menos estar pensando que entendo, não sei me entregar à desorientação». Numa sequência de capítulos que começam sempre com a última frase ou oração do capítulo anterior, a autora interrompe, mas não quebra as ideias, contaminando-as sempre de uma sequência inquebrantável. A mesma que a personagem de Clarice Lispector não adivinha na sua vida: «Mas é que nunca fui capaz de perceber as coisas se encaminhando; todas as vezes que elas chegavam a um ápice, me parecia com surpresa um rompimento (…)». E é a uma incessante busca interior que sempre retorna: «(…) acho que estou precisando de olhar sem que a cor de meus olhos importe, preciso ficar isenta de mim para me ver».

E eis que, no quarto que a sua anterior empregada doméstica ocupava, surge o ímpeto para um reencontro consigo mesma: «Não ter naquele dia nenhuma empregada, iria me dar o tipo de atividade que eu queria: o de arrumar. Sempre gostei de arrumar. Suponho que esta seja a minha única vocação verdadeira. Ordenando as coisas, eu crio e entendo ao mesmo tempo». E aqui, encontra a melhor forma para as coisas. Rapidamente, porém, percebe que ali afinal nada há para arrumar e, nessa desilusão, dá-se então o encontro com a barata indesejada, que a leva a uma inopinada reflexão, inundada de pensamentos introspetivos – duros, muito duros – sobre a existência e o seu significado. E, ao enfrentar e comer a barata, reencontra-se neste ato inofensivo e simplório consigo mesma, redescobrindo a sua identidade que achava perdida. Este processo (um tanto ou quanto kafkiano) vai-se revelando à medida que Clarice Lispector coloca na boca da sua personagem pensamentos reveladores, de novo, de estabilidade, segurança e, mais do que tudo isso, convicção e bravura: «Eu sou mansa mas minha função de viver é feroz». E, no final, esperança: «(…) o estado de graça existe permanentemente: nós estamos sempre salvos».

A Paixão segundo G.H. é uma criação inquietante, uma busca interior desconcertante e uma investigação à própria identidade e à própria alma, metaforizadas na arrumação de um quarto onde a personagem se esbate num vazio incomensurável e na tomada de consciência da fragilidade humana. Este livro de Clarice Lispector, de 1964, consiste num tratado sobre a condição humana. Numa analogia, se quisermos, da paixão de Cristo.

Dizer ainda que aos amigos brasileiros também lhes perguntei, claro, que autores portugueses tinham já lido. A resposta foi pronta e unânime: «[Fernando] Pessoa». Claro!

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