Flores, o livro que acaba de chegar às livrarias, é da autoria de Afonso Cruz, um dos escritores portugueses da atualidade que mais exprime originalidade. Todo o seu universo literário, que concorre com várias outras artes por si dominadas de igual forma (música, cinema de animação, ilustração), tem a capacidade de transportar o leitor para territórios muitíssimo pouco comuns. Não fosse isso tão raro hoje em dia e nem nos daríamos conta da sua originalidade, que surge por vezes atrás de temas triviais e insuspeitos, como podemos mais uma vez constatar no último título, Flores.

Neste livro, Afonso Cruz desperta-nos para a urgência de saber viver – que deve imediatamente ser posta na agenda do nosso dia a dia –, recorrendo para tal à evidência da banalização das tragédias e da injustiça. O fator mediático é hoje, possivelmente, o mais gritante e o que mais relembra a ocorrência repetida de desgraças. Mas não incomoda consciências, apenas as alerta…

Flores descreve a relação de aproximação entre dois vizinhos. Um, o senhor Ulme, que soma a um aneurisma uma doença degenerativa que acaba por afetar-lhe as funções motoras. Lembra-se do código do Multibanco, mas não consegue recuperar a memória do seu primeiro beijo. Outro, o Kevin, soma inabilidades na gestão de um casamento condenado por um guarda-chuva em cima da cama e competências em jornalismo de investigação, que usa para ajudar o senhor Ulme a recuperar/reinventar a sua identidade.    

No encontro entre cada uma das personagens, que deixa patente o valor atribuído à vida humana, Afonso Cruz retrata a importância da memória como matriz fundadora da identidade. Para lá chegar, o autor mostra-nos a mecânica da repetição das atividades, os desvios ficcionistas que tantas vezes fazemos para redesenhar aquilo que somos (ou salvaguardar de algum modo o que gostaríamos de ser e não somos). Trata-se da forma como a nossa identidade depende da conservação da memória que, por sua vez, é refém da nossa capacidade, tão profícua e solícita, de recriar e reconstruir a realidade. E o efeito que a reconstrução dos outros tem sobre nós e a nossa sobre os outros…    

Pelo meio, Afonso Cruz fala também do amor, claro. Mas no sentido mais lato, aquele que a grande força do universo conserva ainda como a missão mais nobre da vida: a junção de células que dão origem a novos seres.

Flores poder-se-ia descrever com uma das suas passagens:

«– É lamentável – barulho do papel higiénico – que esse homem seja considerado um profissional, quanto mais um ser humano. A minha teoria da grainha é basilar, irrefutável, como dizer sem parecer arrogante?, perfeita. Repare, Kevin, repare, a grainha é o que nos faz sentir que a uva existe, é – barulho do autoclismo – a testemunha da uva. Tudo o resto se perde, exceto aquele pequeno caroço. A alma é densa, é dura como a grainha da uva, tudo o resto se desfaz em sumo na boca.»  

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