Chego ontem à Feira do Livro de Lisboa (minha primeira visita nesta edição), com dois livros fisgados para comprar: A Sociedade dos Sonhadores Involuntários, de José Eduardo Agualusa, e Livro de Letras, de Vinicius de Moraes. Não comprei nenhum deles. A volta na feira trocou-me as voltas. E ainda bem.
Cruzei-me com alguns escritores amigos com quem fui trocando impressões e eis que subitamente se cruza connosco a escritora Lídia Jorge que, num cumprimento assertivo e meigo, olhos nos olhos, me incentivou mesmo sem o saber a procurar nos escaparates alguns dos seus livros e, num ímpeto, venho eu da feira com, entre outros, O Organista, cujas 43 páginas da edição bilingue li à velocidade da luz.
O Organista consiste numa fábula encantadora sobre a criação do Universo e a relação do homem com Deus e, até, sobre os caprichos de Deus em relação ao homem. Pelo meio, há um órgão e há música. Em poucas palavras, O Organista retrata a génese de tudo a partir do nada, iniciando-se com uma frase verdadeiramente extraordinária: «(…) o vazio é um lugar onde não existe nada, mas no interior do qual se espera que venha a acontecer tudo». A romancista e contista portuguesa deixa-nos impetuosamente a digerir a definição de vazio logo na primeira frase.
O vazio vai sendo preenchido, pois, com um órgão que surge e que, sentindo-se incompleto, chama também o homem, os quais, ainda assim insuficientes, chamam a mulher. E é de todos que surge a música primordial. Daí surge o Criador a querer ele próprio experimentar o órgão e, numa propagação de música com alcance para os antípodas, chega «(…) um novo Universo que saía da ponta dos dedos do Criador». Já repleto de astros, estrelas, planetas, cometas, asteroides e meteoros. Contemplando a amplitude deveras transcendente do Universo assim criado, o Criador logo se denunciou percebendo que «(…) as distâncias que havia criado eram indecentes, tendo em conta a dimensão do homem, e como o tempo (…) se transformava numa obscenidade quando pensado à escala do homem». Mas é dessa grandeza e dessa inacessibilidade que se faz misteriosa e simultaneamente miraculosa a passagem do homem por aqui. Por isso não haverá vazio que não se preencha com este belíssimo todo.
O Organista é a resposta de Lídia Jorge a um desafio lançado a vários escritores internacionais para redigirem um conto sobre o espaço e que, vivendo ao mesmo tempo autónomo de todos os outros, mereceu publicação própria em Portugal em 2014. Surge, afinal, a confirmar que apesar de todos os avanços do conhecimento científico, há um sentido essencial – do onde vimos e do para onde vamos – que continua em aberto. Como uma espécie de vazio, onde com esta leitura passamos com esperança a antecipar que possa, afinal, «acontecer tudo».
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