João Netto
Nasceu em 1966 e dos seus 51 anos já viu e ouviu muito. Permanece todavia com o olhar sagaz de quem continua a aprender, quer no plano pessoal, quer no profissional. No olhar, para além da sagacidade, aloja o brilho de quem está bem, de quem dá à vida o troco certo. De quem vive ao ritmo que quer, de quem corre, como diz o ditado, por gosto. É o João Netto, o primeiro português, ao lado de João Bandeira Santos, a integrar a Maratona do Polo Norte, decorrida em abril deste ano. Falamos de uma maratona absolutamente singular. A única disputada num oceano, o Ártico, em torno do Polo Norte geográfico. Decorrendo anualmente desde 2002, está referenciada internacionalmente como um dos eventos desportivos mais exigentes e espetaculares do mundo e é conhecida pelas condições de exceção em que os atletas competem: 13 voltas, cerca de 42 km, 9 horas consecutivas em águas congeladas e com temperaturas rondando entre os -40 e os -50 graus. João Netto é gestor de telecomunicações numa organização líder de mercado e tem a liderança na massa do sangue. Diz que o seu quotidiano se faz a liderar pessoas e projetos, mas sempre em contínua aprendizagem. Os seus olhos não mentem. É essa ávida vontade de sair melhor, de chegar à meta, de vencer contra o que venha de adversidades que caracteriza o espírito inquieto de João Netto. Mas não confunde a maratona com a corrida de velocidade. Cada passo que dá parece avisado, embora apimentado com a aventura e o risco que os líderes estão dispostos a assumir. Tem dois filhos. O mais velho pretende seguir direito e fazer justiça. A mais nova, com limitações visuais, frequenta o Centro Helen Keller e participou inclusive com o pai em várias provas de atletismo, tendo por exemplo percorrido na íntegra a Maratona de Lisboa, fazendo as delícias do progenitor. Do atletismo e do desporto em geral para a vida empresarial, leva os melhores ensinamentos e vice-versa. As melhores lições de um lado e do outro leva-as para casa. Onde sempre se reencontra. É um homem feliz. Com mundividência. Que tive o privilégio de conhecer num debate que moderei sobre a sua participação na Maratona do Polo Norte e cujas palavras, que se desdobram em sucessivas histórias, serviram de mote desde o primeiro momento para desejar realizar esta entrevista.
Com 47 anos de idade, teve uma experiência inaugural: a primeira participação numa maratona (Maratona de Lisboa, em 2013). Que o levou a outras maratonas e, até, este ano, à Maratona do Polo Norte. Como explica a chegada das maratonas nessa fase da sua vida?
Para quem tem uma vida intensa e com as responsabilidades que tenho, confesso que por vezes me faltam tempo para mim próprio e concentração, tudo é muito rápido, a maioria das vezes atuo sem ter tempo para definir estratégias. Ora, o desporto individual dá-nos isso que por vezes nos falta, enquanto corremos, nadamos ou andamos de bicicleta longas horas, temos essa benesse e eu aproveito-a ao limite. E, como sou uma pessoa em permanente desenvolvimento, nunca acho que já dei tudo. As maratonas, até ao início de 2013, eram completamente impensáveis para mim, que não corria 400 metros! No entanto, depois de começar, efetivamente surge uma necessidade constante de ir cada vez mais longe e é essa a magia da distância. Neste momento, mais importante do que as distâncias, é o grau de dificuldade das provas. Cada prova é uma prova, como é reconhecido por todos nós, temos estados físicos e psicológicos diferentes todos os dias e, terminar uma maratona ou uma ultramaratona, é sempre um acontecimento especial, porque colocamos à prova todos os nossos limites e fico sempre com a agradável sensação de realização, de concluir mais um projeto, à semelhança do que me acontece quando concluo algo importante para a minha organização profissional.
Todos nós que nos metemos neste tipo de desafios somos um pouco loucos, mas não tanto como as pessoas imaginam. Uma pessoa que não faça a devida preparação para este tipo de desafios corre sérios riscos e esses sim podem ser considerados loucos.
É (ao lado de João Bandeira Santos) o primeiro português a participar na Maratona do Polo Norte, um evento desportivo cujo recrutamento é extremamente exigente. Que características é que o João Netto tem para integrar o grupo tão exclusivo dos atletas que competiram?
É sempre difícil quando falamos de nós próprios. À semelhança de muitos outros atletas, tenho características singulares, nunca estou completamente satisfeito com nenhum resultado, seja ele qual for! Desde que me conheço, sou uma pessoa de certa forma auto-suficiente e muito pouco dependente de terceiros. Desde muito cedo, comecei a fazer a minha gestão autonomamente, comecei a trabalhar muito cedo, acumulei trabalho com os estudos e, rapidamente, progredi quer pessoalmente quer profissionalmente a outros patamares. A dedicação, a capacidade de esforço e de superação tornam-nos pessoas diferenciadoras. Sou, pois, uma pessoa muito competitiva, muito perseverante e nunca desisto de nada. No entanto, não vou a nenhuma prova sem fazer o devido trabalho de casa. Normalmente, dizem que sou louco! Todos nós que nos metemos neste tipo de desafios somos um pouco loucos, mas não tanto como as pessoas imaginam. Uma pessoa que não faça a devida preparação para este tipo de desafios corre sérios riscos e esses sim podem ser considerados loucos. A minha principal característica, em suma, como referi, talvez seja nunca desistir de nada do que quero, esforço-me até conseguir e, quando consigo, passo sempre para o passo seguinte e é isso que me mantém ativo, a encarar a vida com a vontade de viver que todos me reconhecem. Diz o velho ditado: “Nunca deixes para amanhã aquilo que podes fazer hoje”. É exatamente o que faço, tento viver cada experiência como se fosse a última oportunidade para a viver.
A Maratona do Polo Norte decorre em condições limite. Descreva-nos o ambiente específico em que foi posto à prova. Que obstáculos/desafios enfrentou?
É, de facto, uma prova absolutamente incrível, realizada em condições completamente ao limite do suportável para um ser humano. O diretor da organização tinha-nos informado, no briefing antes da prova, que a maratona teria 13 voltas e disse-nos que não nos devíamos esgotar nalgumas zonas do percurso, porque iríamos despender muita energia fundamental para concluir a prova. Ora, em cada volta, o percurso torna-se cada vez mais num verdadeiro pântano gelado, como costuma dizer o meu parceiro João Bandeira Santos, e é efetivamente a melhor definição para aquele tipo de terreno. Entre muitas outras situações, quando se vai à tenda mudar a roupa por estar já congelada, é extremamente difícil voltar à prova e não desistir… Convém relembrar que na tenda estão cerca de 35 graus positivos e, cá fora, no final, temos uma sensação térmica de 50 graus negativos. Com esta diferença, torna-se somente acessível a um grupo muito restrito de pessoas, que tenham uma força de vontade absolutamente fora do normal.
Julgo que uma prova com estas condicionantes se configura a ideal para pessoas com as minhas características. Quanto mais dura e mais desafiante se torna, mais me diverte. No entanto, eu estava infelizmente fisicamente bastante debilitado. Como tal, tentei correr tão rápido quanto possível, tendo chegado a cerca do km 11, sem nunca ter parado. Tive de optar entre abrandar ou arriscar não chegar ao fim! Estava com bastantes dores na anca direita (lesão oriunda da maratona de Atenas, em novembro de 2016) e nessa sequência a opção foi relativamente simples: lembrei-me sistematicamente, não só dos ensinamentos do Centro de Alto Rendimento do Jamor, como dos conselhos do Dr. Paulo Beckert (médico que nunca se poupou a esforços e que me proporcionou recuperações entre provas de uma forma absolutamente exemplar, pessoa incrível que fez tudo por tudo, sempre de uma forma consciente e sem me deixar correr riscos desnecessários – não podia deixar de o referir!), não arrisquei para conseguir chegar ao fim. Desistir era impensável para uma pessoa como eu, o objetivo era concluir e nós tínhamos essa responsabilidade, digo nós, eu e o João Bandeira Santos.
A equipa organizadora é constituída por pessoas com muita experiência na realização deste tipo de eventos, que não deixam nada ao acaso, tentando minimizar ao máximo todos os riscos. A logística é incrível, dado tratar-se de um evento realizado a 70 Kms do Polo Norte geográfico, onde as temperaturas chegam naquela época do ano a provocar sensações térmicas de -50 graus, como foi o caso nas últimas três horas de prova! Naquele local, não existe absolutamente nada, tudo tem de ser transportado de avião de muito longe para ser somente utilizado durante 3 semanas por ano. Depois tudo é desmontado novamente. As tendas são militares, proporcionando um desconforto incrível, sendo os únicos abrigos durante os três dias que lá passamos, pois cá fora é impossível permanecer mais de 5 minutos. O acampamento “Barneo Ice Camp” está assente na calote de gelo polar que se descola cerca de 200 metros/dia sobre o leito do Oceano Ártico.
A Maratona do Polo Norte, com as suas características de exceção, simboliza que se pode correr pelo impossível, ultrapassar todos os obstáculos. No desporto, nas organizações, na vida… O João é gestor de equipas de profissionais com vocação comercial. Que ensinamentos é que a participação na Maratona do Polo Norte lhe deu que possam ser transportados para quem trabalha numa organização e, assim como no desporto, tem objetivos tão aguerridos?
A situação que mais me faz confusão é a falta de dedicação e de método da maioria dos profissionais dos nossos dias. Eu tento, através dos meus exemplos, demonstrar que nada é impossível e que se nos esforçarmos conseguimos tudo na vida. Precisamos de 30% de sorte e 70% de trabalho para o alcance dos objetivos. O principal ensinamento é que, perante um cenário extremo como o da Maratona do Polo Norte, temos de ser perseverantes, muito modestos e não subestimar toda e qualquer circunstância naquele meio ambiente.
Vivemos hoje perante um paradigma organizacional em constante mudança, em permanente crise e com fatores de imprevisibilidade grandes. O mundo está a mudar muito rapidamente e temos de acompanhar essa mudança. Por isso, nas organizações há uma tendência crescente para valorizar a versatilidade, o maior número de competências, a inteligência emocional, o equilíbrio entre a vida profissional e a vida familiar… A participação na Maratona do Polo Norte ajudou a ganhar este “mundo”, a investir em competências mais diversificadas que farão de si um profissional ainda mais completo?
A versatilidade, um elevado número de competências e a inteligência emocional são sem dúvida alguns dos meus pontos fortes, tanto no desporto, como na vida profissional, assim como na pessoal. Desde muito novo que reúno essas características. Trabalho há cerca de 33 anos na área das telecomunicações, que está em constante mudança e que exige versatilidade. Caso contrário, morremos para o mercado! A título de exemplo, enquanto estudante comercializava motas e por vezes carros. Fui sócio gerente de uma empresa familiar de exploração marítima durante 11 anos e, ao mesmo tempo que tinha essa empresa, era um quadro coordenador numa organização de referência e líder no mercado nacional. Fui quadro de topo em multinacionais, etc. Teria sido bem mais seguro e confortável ter seguido a carreira por conta de outrem, tendo em conta o patamar que já havia alcançado, mas a minha inteligência emocional permitiu-me arriscar mais, culminando na criação de uma organização que hoje já conta com 21 anos de laboração contínua.
Sou efetivamente um homem de fé!
Dessa síntese entre a vida profissional e as maratonas, percebo que leva também para casa as melhores lições. Que valores acaba por transmitir, enquanto maratonista, à sua família?
A família é um dos principais bens que nós possuímos! Para melhor consubstanciar a educação/formação dos meus filhos, tento aproveitar as minhas experiências, espírito evidente de sacrifício, dedicação e priorização de objetivos, de forma a que lhes sirva de exemplo.
O João é um homem de fé. Que ferramentas da sua espiritualidade transporta para a perseverança exigida a um maratonista? E vice-versa? Como vai reconstruindo a sua fé a partir das especificidades das maratonas?
Sou efetivamente um homem de fé! O que mais aprecio neste desporto são as provas de longa distância conhecidas pelas ultramaratonas, pelo seu grau de dificuldade. Ora, quando estou perante um desafio de extrema exigência, normalmente a fé vem sempre ao de cima. Sou um felizardo porque Deus me permite que eu ali esteja, tenho família que me proporciona essa disponibilidade, tenho saúde e capacidade financeira que me permitem ter esse privilégio e tenho, lá está, um espírito de sacrifício infindável. Já me aconteceu de tudo! Lembro-me, por exemplo, ao Km 25 na maratona de NYC (2014), de ter tido uma lesão na perna esquerda que me obrigou a arrastar-me em esforço até à conclusão da prova. A pensar que tinha uma gripe, tendo em conta a febre na véspera, corri a maratona do Porto com uma diverticulite, que me obrigou a um internamento hospitalar de cerca de 9 dias e uma recuperação a antibióticos de 3 meses. Mas primeiro concluí a prova e recebi a minha merecida medalha. A primeira vez que fui a Fátima a pé, partindo de Lisboa, na sequência de uma má escolha de calçado e ainda em Alverca, tive uma bolha no pé de tal dimensão de que ainda hoje me lembro. Os meus dois parceiros de peregrinação (ambos médicos) acharam que eu iria desistir, pois ainda faltava andar cerca de 120 Kms em apenas dois dias. Só a fé me transportou até ao final. Na maratona de Atenas, uma inflamação extrema na perna esquerda, para a qual um médico grego no Metropolitan Hospital na véspera da prova me deu 3 injeções, sugerindo que eu rezasse, não foi suficiente para me impedir de chegar com sucesso ao fim. A fé acompanha-me sempre em tudo o que faço.
A maratona, na sua essência, é também uma forma de trabalhar a felicidade, certo?
Claro que é! Muito pouca coisa me proporciona maior felicidade que a sensação de liberdade que a corrida me proporciona.
Qual é a prova que se segue?
Neste momento, estou a recuperar da lesão na anca e se o Dr. Paulo Beckert achar que tenho condições, vou participar no IronMan de Barcelona no dia 1 de outubro. Mas devo confessar que estou muito atrasado nos treinos, nesta fase já devia estar em velocidade de cruzeiro… Vou, ainda, tentar entrar na maratona de Boston, em abril de 2018, e dessa forma concluir o programa a que me candidatei conquistando a World Major Marathon. Depois, seguir-se-á uma prova no calor e em altitude (que ainda não sei exatamente qual vai ser!), mas espero que se realize até ao fim de 2018.
– Maratona de Sevilha: 2014 e 2015
– Maratona de Sevilha: 2014 e 2015
– Maratona de Sevilha: 2014 e 2015
– Maratona de Sevilha: 2014 e 2015
– Maratona de NYC: 2014
– Maratona do Porto: 2015
– Eco Marathon de Trail em Monsanto: 2015
– Maratona de Londres: 2015
– Maratona de Berlim: 2015
– Ultra Maratona (trail) Monte da Lua: 2015 e 2016
– Maratona de Chicago: 2016
– Maratona de Atenas: 2016
– Maratona de Tóquio: 2017
– Maratona do Polo Norte: 2017
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