De todas as leituras que fiz de Tolentino Mendonça, ocorre-me uma imagem: a ampliação do espanto. As suas palavras sempre contagiantes, sempre novas, interpelam-nos, dialogam com o nosso interior, qualquer que seja o nosso estádio interno. Desafiam a nossa capacidade de nos espantarmos. Foi o que me aconteceu, também, com o Elogio da Sede. Talvez de forma ainda mais especial, na medida em que neste Tolentino Mendonça reúne os textos que o guiaram nas reflexões que conduziu junto do Papa e da Cúria Romana, numa semana de exercícios espirituais preparatórios da Páscoa. Este ano, o Papa Francisco escolheu para o efeito um português, Tolentino Mendonça, entre os mais de 400 mil sacerdotes existentes em todo o mundo. E, se pensarmos bem, ao termos acesso a estas meditações, participamos nas considerações decisivas da Igreja sobre o mundo.

Este extraordinário Elogio da Sede é, desde logo, um caminho indicado para um encontro com Jesus, uma via aberta para um maior conhecimento de Jesus, os seus gostos, preferências, ritmos. A sua simplicidade, inteireza e misericórdia. A sua sede. E entre o grande elogio à sede, à boa maneira de Tolentino Mendonça, vão surgindo pedaços do pensamento de outros autores, num recurso calculado a citações sempre surpreendentes, avassaladoras, colossais. Com um propósito: avaliar o estado de maturação da nossa espiritualidade, do nosso mundo interior. E eis que chega a literatura como ingrediente fundamental de análise dos «itinerários religiosos». Por três motivos essenciais: «(…) a literatura consegue gerar-se como metáfora integral da vida (…)»; «(…) a literatura dá-nos um conhecimento concreto, não conceptual (…)»; e «(…) a literatura é um instrumento de precisão (…)». E, nisto, Tolentino Mendonça cita uma página inteira de Clarice Lispector. Em frente ao Papa e à Cúria Romana. Não é delicioso?

No Elogio da Sede é feita uma importante apologia da esperança. Há nesse ponto em concreto uma referência ao Livro de Jonas, que enaltece o sorriso e a luz: «Diz-nos [o Livro de Jonas] que a sabedoria está do lado dos anunciadores da esperança e não dos apocalípticos apregoadores da tragédia. Mas para isso precisamos de fazer um caminho». E através desse caminho compreenderemos que a nossa história também se determina pelas lágrimas. Que são caminho, por sua vez, para a santidade. E assim se faz a estrada, a qual «tem mais a ensinar-nos do que a estalagem», para citar D. Quixote de Cervantes, como o faz Tolentino Mendonça.

Nesta estrada que o livro nos incute, surge um apelo à mudança de ângulo sobre as vicissitudes, as turbulências, os percalços. Interpela-nos de repente uma visão distanciada da vida que nos diz que não só a vida continua, mesmo perante a fé e uma atitude espiritual amadurecida, a fazer-se rodear de tentações, angústias, obstáculos, como passamos com a maturidade a apreciar a trepidação da imperfeição. Porque nos permitirá sair da superfície, ganhar autenticidade. Resgatar o essencial. «A Fé resiste e aprofunda-se nas necessidades, nas angústias, nas afrontas, nos sofrimentos, isto é, no interior de uma existência assaltada pela sede (…)». E parece ser neste estado de rutura e aparente intranquilidade que a identificação com Jesus se consagra. É nesta linha (à primeira vista) paradoxal que Tolentino Mendonça situa, ainda, a parábola do Filho Pródigo, cuja chave interpretativa é uma palavra de ordem para a nossa própria conversão, a nossa profunda alteração de perspetiva, o nosso recomeçar. Concretamente, a partir da misericórdia, «(…) como uma das coisas mais exigentes e fascinantes da vida». A partir, também, das periferias, do invisível, em detrimento de uma ditadura do centro e da autorreferencialidade.

Tolentino Mendonça diz-nos, por fim, que precisamos do «sim» para tocar o mistério da própria vida (apesar da importância do «não») e insiste no amor: «se cada um de nós não puder assentar a sua vida numa experiência incondicional de amor, alguma coisa permanecerá como défice». E deixa-nos uma nova interpelação na afirmação de que «(…) a confiança é sempre um salto». Parece ser esta a hora de o darmos. E, isso, aumentará certamente a nossa sede.

.

error: Content is protected !!