Corriam os meus tempos universitários quando me sentava, atentíssima, em frente à televisão para ver um programa da RTP2, Conversa Privada, conduzido por Luís Osório, Daniel Sampaio e Ana Drago. Na minha memória, bem guardadas, ficaram algumas das conversas que por lá se deram e uma admiração pela forma como o Luís (eram os profissionais de comunicação que mais prendiam a atenção de uma aluna de comunicação social) levava a conversa. O Luís, que tive o privilégio de conhecer, entretanto. E que, entre tantas outras atividades, modera o ciclo de entrevistas que redundará num livro: “30 portugueses, um país”, com o apoio do Hotel Porto Bay Liberdade, do Santander e da Guerra e Paz.
Sentei-me há dias em frente ao palco do Porto Bay Liberdade para assistir à conversa com Maria João Avillez (MJA), jornalista da velha guarda, desempoeirada e com a consistência e a espessura, a experiência e a visão que nos espantam os olhos. Conversa conduzida pelo Luís (LO) e merecendo o mesmo espanto.
Num diálogo que incluiu Trump, Erdogan, Putin e Theresa May, LO perguntou a MJA se, apesar do pessimismo, continua a ter ilusões. E teve resposta pronta, mas refletida: «Essa é a pergunta mais difícil que me fez desde o princípio. Esse combate entre a lucidez e a ilusão. Há uma parte de mim muito lúcida, mas depois há qualquer coisa que deve ser genética – a minha mãe era assim – e que abre espaço apesar de tudo a uns centímetros quadrados para a ilusão». Esta é a mulher que, para espanto do entrevistador, diz que está «sempre a levantar muros de defesa» à sua volta. A mulher que alega mostrar os seus textos mais delicados dezenas de vezes aos principais confidentes, antes de os fazer chegar à tipografia. Entre esse grupo restrito de confidentes, surgem o marido, a família, alguns amigos.
MJA referiu-se à família como «simultaneamente a retaguarda e o porto de abrigo, o lugar de onde se parte e aonde se volta». Da mãe recorda o sentido da vida, o gozo pela vida em cada faceta, o sentido da festa, o qual, não sendo uma coisa muito portuguesa, diz que herdou. Assume que a mãe era «mais aparatosa e viva», mas descreve o pai como uma «pessoa extraordinária, seríssima, que fora secretário do Dr. Salazar com vinte e poucos anos, com Alexandre Ribeiro da Cunha, que é pai de um grande amigo, Pedro Ribeiro da Cunha». Sobre a casa de família, no Campo Grande, onde mora, diz que continua tudo igual, «mas já não está lá quase ninguém»… Falou ainda do «culto dos amigos» como uma prioridade: «trazê-los,
acolhê-los, isso é importantíssimo para nós».
MJA nasceu em 1945, com a Europa em paz. «Mas agora vivemos num mundo tão perigoso, em que a única certeza que temos é a incerteza. Não nos podemos dar ao luxo de ter nenhuma certeza.» E avança: «repare na simultaneidade das coisas que nos assustam: quem está onde? O Trump, o Erdogan, o Putin, a Theresa May com o Brexit, a fraqueza da Europa. Ninguém fala nisso, mas há duas Europas. Há a Europa da Itália e há a Europa de Macron e da Merkel vacilante. Não há, portanto, nenhuma espécie de certeza e acho que a tendência não é para melhorar».
LO, numa provocação a talhe de foice, disse-lhe que parecia nunca ter estado, aparentemente, tanto contra a corrente em Portugal… O que lhe valeu um assentimento com a cabeça, por parte de MJA. A verdade é que, a poder decidir sobre uma grande entrevista a realizar já na semana seguinte, MJA escolheria Trump. Sim, Trump. Por ser «demasiado mau para ser verdade. Houve tanta gente a acreditar nele e provavelmente vai ganhar de novo as eleições. Gostava de perceber um pouco melhor e não ficar neste maniqueísmo». Não entrevistou Trump, mas gravou no microfone as palavras, porventura, de todas as figuras políticas relevantes no país, embora diga com ênfase que não entrevistou só políticos e que não se esgota na política, essa atividade «com surpresas» e na qual «não há nada mais perigoso do que a imprevisibilidade e a irracionalidade.» A jornalista que diz não ter tido um clique para o jornalismo, antes uma «carpintaria, um ir fazendo», já gravou em pedra a visão de vários líderes. E mesmo sendo muitos mais, à conversa com MJA urge perguntar por algumas das personalidades que teve oportunidade de conhecer, de muito perto.
Inevitavelmente, LO confrontou MJA com o mítico Francisco Sá Carneiro. «Foi um grande homem, um advogado da alta burguesia do Porto que, com Francisco Pinto Balsemão e Magalhães Mota, fez uma coisa admirável: a Ala Liberal, que veio depois a desaguar no PPD. Hoje, com os quatro canais de TV, com os jornalistas implacáveis e muitas vezes implacavelmente ignorantes, com Portugal como está, não sei se o Dr. Sá Carneiro beneficiaria destas circunstâncias… Ele é um mito porque morreu nas condições em que morreu, no auge da paixão, da tragédia, da perda de eleições. Agora… a minha admiração por ele não me retira a lucidez. Não sei como seria hoje neste país tão diferente, em circunstâncias mais difíceis e pesadas.»
LO avançou e introduziu Álvaro Cunhal: «A Maria João é das únicas pessoas que no Partido Comunista continua a ser olhada com muito respeito e a ter créditos pela relação com Álvaro Cunhal». Outra provocação que mereceu resposta pronta: «Se ele tivesse tomado o poder, nem você nem eu teríamos continuado a escrever, certo? O que me levou, tantas vezes, primeiro à Rua António Serpa e depois à Rua Soeiro Pereira Gomes foi o inacessível, muito mais do que o lado político. Uma vez levei-lhe uma cassete com um programa do Herman José – ele admirava o Herman –, que adorou. Falámos também sobre Júlio Pomar. Não era só política».
Quando se referiu a Mário Soares, falou mais enquanto cidadã portuguesa e menos na pele da MJA. «O país tem uma dívida absoluta de gratidão para com Mário Soares. Foi o grande reconciliador. Ele não só nos tirou daquele atoleiro pavoroso em que estávamos em 1974. Ele liderou ainda a pacificação de um país dividido ao meio no pós Freitas do Amaral / Soares. E foi um Presidente da República extraordinário, que soube juntar a dimensão lúdica com a proximidade, com a cultura».
A jornalista que em 1974 entrou para o então recém lançado Expresso, não deixaria de ser confrontada com o nome de Francisco Pinto Balsemão. «Tenho uma admiração incondicional pelo Francisco Pinto Balsemão. Ele era um filho de família, filho de pais tardios, tinha muito dinheiro, muito sucesso com as mulheres. Tinha tudo para se ter perdido por aí. Fez a Ala liberal com o Dr. Sá Carneiro, fez o Expresso, que formatou uma geração, fez a SIC, que formatou outra geração, e é um grande, grande jornalista.»
À pergunta «entre fé, esperança e caridade ou entre liberdade, igualdade, fraternidade, qual é a trilogia que escolhe?», MJA respondeu convictamente: «liberdade». Seguiu daí para o sentido da igualdade e sobre a possibilidade de distribuir «bem as coisas e de forma inteligente, de maneira a que cada um renda, não por igualdade, mas…». E LO rematou com a referência à parábola dos talentos. Que levaria a uma segunda conversa.
A mesma MJA que também entrevistou Margaret Thatcher diz-se «muito insegura», mesmo perante a interpelação de LO: «Mas está muito bem treinada!». Não vota à esquerda e a única vez que votou no PS, em 1975, considera que votou no país e não em Mário Soares. Falamos da mesma MJA que lê apaixonadamente Ruy Belo e adora ir à Zara. A dona de uma voz que diz ser «rouca demais». Não o suficiente para ter passado despercebida entre o jornalismo que vai seguindo o seu caminho indefinido, muito diferente do do Expresso de 1974, quando MJA começou, e que continua a ouvi-la. E entre a classe política, que nas diferentes representações aceitou e aceita responder às suas perguntas, mesmo com o gravador no play.
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