«Sou um menino que vê o amor pelo buraco da fechadura. Nunca fui outra coisa. O buraco da fechadura é, realmente, a minha ótica de ficcionista. Sou (e sempre fui) um anjo pornográfico». É isto que começamos por ler, se começarmos pelo fim, pela contracapa de A Vida como Ela É, uma coletânea de 60 contos, selecionados entre os vários que o jornalista e dramaturgo brasileiro Nelson Rodrigues (1912-1980) publicou na coluna do jornal Última Hora, exatamente com a mesma designação, “A Vida como Ela É”. Falamos de uma transferência da crueza, da impiedade, da ironia, da tragédia, do absurdo, do ridículo, da ousadia e do escândalo, ou seja, da linguagem tão própria do escritor que, na escola, apresentou o seu primeiro texto, por vocação, já no registo de “A Vida como Ela É”, numa abordagem cruel sobre o adultério. Aos 7 anos.
Há nos contos de Nelson Rodrigues, simultaneamente, uma complexidade shakespeariana e uma irónica simplicidade. Pelo meio, por vezes, uma linha certeira a evidenciar em qual dos lados ficam a complexidade e a simplicidade. Outras vezes, de repente, tudo parece imiscuir-se como num campo de batalha em que as barricadas se pulverizaram. Nelson Rodrigues é imprevisível e, ao mesmo tempo, sabíamos lá no fundo que aquele seria o desfecho único possível. Porque nunca nos enganou. Sempre se denunciou no seu estilo frontal e atroz. Voraz.
Abel Barros Baptista, que assina o prefácio, dá o mote para um «dramaturgo genial» por detrás do livro. E um jornalista que iniciou carreira «aos 13 anos num jornal fundado pelo próprio pai». Entre o tom do jornalismo e o do teatro, Nelson Rodrigues afirma-se firme no ciúme, no adultério, na (in)fidelidade, no casamento. Há um deambular entre aquilo que parece ficção e aquilo que é retirado da vida exatamente como ela é. Sem tirar nem por. Mas é «sempre preciso perceber a piada». Remata Abel Barros Baptista.
N’A Vida como Ela É, encontramos passagens desconcertantes que questionam, por exemplo, como é que uma mulher feia não desconfia da própria fealdade? A fealdade que parece humilhar o marido da mulher feia. Ou a discussão sobre o ponto crítico de um casamento ser, não a mulher, mas a sogra, e outras divagações doutrinárias sobre a felicidade matrimonial ou, como o autor refere, a «felicidade de novela». Ou as qualidades de um dos seus personagens serem, inclusive a fé, «de fundo asmático». Quando todos os temas parecem ganhar alguma diversidade argumentativa, eis que surge, de novo, a fidelidade no palco, como se de um fio dramatúrgico se tratasse. «O homem fiel nasceu morto», diz Nelson Rodrigues na boca de um dos seus apocalípticos personagens.
Nelson Rodrigues é inenarrável. À partida, parece vestir-se de uma «voz de barítono» que lidera uma narrativa certeira, clara, escorreita. De repente, como que num golpe fatal do destino, tudo se vira do avesso e escorre para um clímax imprevisível, rocambolesco, contundente. Atestado de «cenas dantescas». Ululante (termo do autor que adorei). Desconcertante. Imperdível.
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