Mantenho uma das tradições do Entre | Vistas e recapitulo, neste último dia do ano, os livros que trouxe debaixo do braço e que fui lendo ininterruptamente ao longo deste 2019 tão desafiante. 14 livros. É a conta que faço. Que não terá, com certeza, qualquer interesse pela quantidade. Faço a conta, claro, pela aprendizagem e o contágio sempre feliz que a literatura nos injeta, numa materialização fiel do que é, afinal, a pulsação da própria vida. Exatamente com os mesmos batimentos cardíacos.
Em 2019, li pela primeira vez uma série de autores charneira, entre os contemporâneos: a italiana Elena Ferrante, o brasileiro Nelson Rodrigues, a norte-americana Patty Smith, o espanhol Javier Marías, o indiano Mahatma Gandhi e os portugueses Luís Osório e Paulo Duarte. Pelo meio, devorei duas biografias assinadas por Cândida Pinto (sobre Sá Carneiro e Snu Abecassis) e Kursty Gusmão (sobre Xanana Gusmão). Repeti o português Afonso Cruz e a holandesa Etty Hillesum.
De Elena Ferrante, o extraordinário A Invenção Ocasional. Fala dos medos que acumulamos e que muitas vezes queremos impreterivelmente combater por nos faltar a coragem de nos imaginarmos na figura enfraquecida do amedrontado. Traz numa outra crónica o riso, assumindo: «(…) o que me parece cómico não faz rir ninguém». Como mãe que é, fala da gravidez e da evidência de que os filhos mudam tudo, desde logo «(…) a ordem hierárquica das nossas vidas». Numa atitude muito firme, consolidada, advoga diferenças entre mulher e homem. «O “demasiado” de uma mulher produz violentas reações masculinas e, além disso, a inimizade de outras mulheres que são quotidianamente obrigadas a disputar as migalhas dos homens. O “demasiado” dos homens, em contrapartida, gera admiração e lugares de comando.» E prossegue, em tom contundente, lembrando que «(…) depois de um século de feminismo, não conseguimos ser nós próprias até ao fim, não nos pertencemos».
Do inenarrável Nelson Rodrigues, li A Vida como Ela É, uma coletânea de contos. E há nos contos de Nelson Rodrigues, simultaneamente, uma complexidade shakespeariana e uma irónica simplicidade. Pelo meio, por vezes, uma linha certeira a evidenciar em qual dos lados ficam a complexidade e a simplicidade. Outras vezes, de repente, tudo parece imiscuir-se como num campo de batalha em que as barricadas se pulverizaram. Nelson Rodrigues é imprevisível e, ao mesmo tempo, sabíamos lá no fundo que aquele seria o desfecho único possível. Porque nunca nos enganou. Sempre se denunciou no seu estilo frontal e atroz. Voraz.
Na Biblioteca Pessoal, Jorge Luis Borges reúne vários prólogos «de uma série de cem que haveria de constituir uma coleção, a súmula das suas preferências literárias». Aqui, ficamos a conhecer o que pensa Borges de alguns dos maiores escritores. Lista vários clássicos e diz, a propósito de Heródoto, que o espaço se mede pelo tempo. Fala da «obra-prima» de Virgílio, Eneida. De William James, que «repetiu, como quase todos os homens, o monólogo de Hamlet». Volta aos contemporâneos para mencionar que é inconcebível falar de «literatura atual» sem falar de Whitman ou Poe. E volta a muitos, muitos mais, numa arrumação bibliotecária da sua visão sobre a literatura, que também é a sua visão sobre o mundo. E sobre a vida.
Coloquial. Autêntico. Bonito. São, de uma assentada, adjetivos possíveis para Devoção, o livro este ano publicado em Portugal com assinatura de Patti Smith. A estrela norte-americana que se celebrizou pelo rock’n’roll na década de 1970 e que, numa ultrapassagem veloz ao seu tempo, levava então às suas músicas a boa contaminação da poesia. Hoje, com esta fantástica Devoção, Patti Smith faz uma reflexão sobre o processo criativo, o seu e no limite o de todos os artistas. Numa interrogação profunda sobre por que escrevemos?, a artista musical e visual, também escritora, leva-nos embutidos numa viagem pela sua escrita que contempla e interpela e faz com que, na mesma medida, contemplemos e interpelemos.
Princípio de Karenina, publicação recente do escritor português Afonso Cruz, consiste numa provocação declarada a Tolstoi. Para o escrever, Afonso Cruz aceitou fazer uma viagem ao Vietname e ao Camboja, sob a chancela do Centro Nacional de Cultura. Com o objetivo de «encontrar vestígios de nós próprios pelo mundo, em lugares tão distantes como a Cochinchina (que titulava a viagem) e, porventura, encontrar essas mesmas geografias dentro de nós», desta viagem resulta um Princípio de Karenina a precipitar para um tal de «estrangeiro» tudo o que fica fora do local de conforto. Depois do medo. «Uma boa parte da Humanidade pode ser definida pela doença do meu pai, pelo medo».
Como Franz Kafka, na sua Carta ao Pai, Luís Osório não deixa ninguém indiferente em mãe, promete-me que lês, num apelo à mãe, aparentemente, impreparada para a vinda de um bebé: Miguel, de olhos azuis e traço aristocrático, como o tio António, ironicamente o «mais provinciano da família». «Éramos felizes naquela casa de bonecas e formigas. Muito mais fácil o mundo quando nos parecia caber numa mão». A partir desta aparente pequenez, o autor dá-nos o mundo. E permite-nos um contacto com a complexidade do ser humano, das relações familiares, da narrativa da vida, nesse entrecruzar frenético entre a realidade e a ficção, a ficção e a realidade. Num outro registo, em A Queda de Um Homem, o jornalista (ou ex-), escritor, consultor, autor de projetos criativos deixa-nos uma metáfora atroz sobre a cruel contemporaneidade; o embevecimento (evoluído para deslumbramento cego e desmedido) causado pelo poder (poder pelo poder); a linha ténue entre o bem e o mal; a ausência de valores. Um tratado, em síntese, sobre um valer tudo sem precedentes, subtil, por vezes. Uma espécie de generosidade na pulhice.
Snu e a Vida Privada com Sá Carneiro, da jornalista Cândida Pinto. A relação de ambos é submetida a um escrutínio público inigualável, à reação de um país a braços com o puritanismo, um quadro de valores e uma constituição limitadora do divórcio. Sá Carneiro avança nos seus avanços e recuos à frente de um partido e com a verdade posta num estilo sui generis de estar na política. Que Snu passa a acompanhar num ziguezaguear discreto entre a fila da frente, ao lado do homem que chega a Primeiro-Ministro de Portugal, e a fila de trás, onde não quer dar nas vistas mas a partir da qual continua a validar cada passo do seu parceiro, numa vontade inquebrantável de contribuir para uma urgente transformação de Portugal e dos portugueses. E que o destino decidiu cristalizar mesmo no auge da glória e da paixão.
De glória e de paixão, curiosamente, também nos fala Javier Marías, n’Os enamoramentos. E, até, Etty Hillesum, nas suas Cartas (1941-1943). Ou mesmo Paulo Duarte, no seu Deus como Tu, que também li. Sobre estes e outros autores, falarei em 2020.
E que 2020 venha pleno de literatura, esse «instrumento de precisão», essa «metáfora integral da vida». Para citar o cardeal, poeta maior, José Tolentino Mendonça.
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