Um amigo, algures em 2019, sugeriu-me Javier Marías. Tens de o ler. Recomendo Os enamoramentos. Extraordinário. Disse-me. Este livro foi distinguido como o melhor livro do ano em Espanha, no mesmo momento em que o seu autor mereceu o Prémio Literário Europeu pelo conjunto da sua obra. Ainda demorei algum tempo a correr atrás da sugestão, porque ou o fazemos por impulso ou esperamos que surja aquele específico momento em que é o próprio livro que nos chama (claro, porque houve um contexto que nos colocou no mesmo caminho). Lá o comprei e fui lendo, lendo, calmamente. Acompanhou-me numa viagem que fiz o ano passado a Roma, ainda que reporte a uma história em Madrid.
Uma editora de livros, María Dolz, não raras vezes solitária, observa e admira todas as manhãs, à distância de algumas mesas do mesmo café, um casal que considera e idealiza perfeito: o empresário Miguel Desvern e a sua mulher Luísa. Esse característico início de dia, esse olhar distante sobre a forma como aquele casal interage e se relaciona permite a María entregar-se com acrescida força a cada um dos seus dias de trabalho. «Era o breve e modesto espetáculo que me punha de bom humor antes de entrar na editora e brigar com o meu megalómano chefe e os seus chatos autores.» Chega, porém, o dia em que surpreendentemente o casal não aparece no café. María descobre a razão quando é confrontada com uma página de jornal exibindo o assassinato brutal e horrendo do empresário. María aproxima-se da viúva e, a partir dos seus desabafos, passa a conhecer de perto a história do casal que sempre contemplou. Nesse ponto de contacto com Luísa, María evolui de espectadora para uma personagem que de repente se vê irreversivelmente envolvida numa trama que mostra o amor e o seu contrário; a amizade e o seu opositor; a compaixão e o seu inverso. São os estados de espírito de María, carregados de idiossincrasias díspares e oscilantes, que vão influenciando a forma como a história passa a ser contada.
Os enamoramentos traz-nos, de forma completamente arrebatadora, uma apologia sobre os mortos. A presença dos mortos na vida de quem por cá permanece. Essa presença incomodativa dos mortos vai perpassando para o leitor ao ritmo de uma pauta musical, com as suas variações, silêncios e intensidades. Tamanha oscilação de sentimentos vai, por sua vez, sendo revigorada com referências a nomes da literatura clássica. Dumas, Shakespeare, Balzac, os quais funcionam como rituais de passagem para o interior de cada personagem, num registo de «tudo como se tudo constituísse novidade». «É um romance de Balzac que me dá razão acerca da Luísa». Entre as obras e os autores de grande prestígio, surge uma forma de nomear o «inabarcável» e de contornar o facto de ninguém estar «disponível para a contemplação do desgosto» ou para ver «prestígio no sofrimento». «Vamos aprendendo que o que nos pareceu gravíssimo chegará o dia em que será neutro», refere-nos, todavia, Javier Marías no seu livro. «Mas não há morte que não alivie qualquer coisa em qualquer aspeto, ou que não ofereça alguma vantagem».
Os enamoramentos vão colocando à frente dos nossos olhos um mapa de interpretação do ser humano: «na realidade qualquer um nos pode aniquilar, do mesmo modo que qualquer um nos pode conquistar, e essa é a nossa fragilidade essencial». Todo o trajeto feito pelo autor, neste livro, desde o denso interior das suas personagens, passando pelo labiríntico contexto da morte e o complexo caldo das relações humanas, constitui, afinal, uma bússola para a descrição do enamoramento como «insignificante» e a sua «espera», ao contrário, como «substancial».
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