Clarice Lispector foi alimentando a leitura feminina com a publicação de crónicas, em diferentes jornais, desde o tempo de faculdade até ao final da sua carreira, com epicentro nos anos 50. Para desenhar a linha de fronteira entre o seu registo literário e os textos femininos, assumiu os pseudónimos Helen Palmer, Tereza Quadros e Ilka Soares. É a coletânea desses trabalhos que podemos ler de uma assentada no livro Correio para Mulheres, uma fusão de textos antes publicados em Correio Feminino e Só para Mulheres. A verdade é que neste Correio para Mulheres, ao lado das dicas de beleza e sobre como atrair maridos, Clarice deixa inevitavelmente transparecer aquilo que ela é, num estilo literário inconfundível. E até porque para Clarice, a sua página, a sua crónica, era a principal razão pela qual o jornal devia ser lido.
«A mulher elegante é discreta. Sua superioridade está nos detalhes, cuidados na harmonia das cores, no bom gosto nos acessórios». «Seja discreta, e veja como os que a cercam tomarão a iniciativa de colocá-la em lugar de destaque, desde que você possua qualidades para isso». Eis alguns conselhos transmitidos por Clarice na sua forma airosa de, a propósito de sedução e beleza, passar ensinamentos de maior profundidade. «Aprender tem qualquer coisa de milagroso». Outra frase que nas crónicas femininas claricianas vemos misturada com outras mais prosaicas e só aparentemente superficiais, deixando denunciar o seu verdadeiro estilo.
O tom do conselho deixa transparecer uma consolidada experiência de vida: «Não grites para impor tuas ideias: atingirás o seu objetivo com bondade e ternura… Guerreando, jamais a mulher ganhou uma batalha». Evoluindo para uma apologia do ser humano (e não apenas sobre a mulher), defende que a «pessoa deveria fazer de vez em quando uma revisão de si mesma». Correio para Mulheres mantém-nos mergulhados num mar de dicas sobre a mulher que fomos, a que somos e a que queremos ser. É um apelo feminista a que sejamos mulher sem dó nem piedade. Mas, igualmente, sem caprichos. Sem manhas contraproducentes.
O que Clarice faz no conjunto das suas crónicas femininas é, em síntese, advogar sobre as condições de um «lugar bom para “ser”». Assim seja.
Sobre Clarice Lispector
Clarice Lispector nasce em 1920, numa aldeia da Ucrânia e com os pais, judeus, em trânsito na tentativa de alcançar a América. Acabam por rumar ao Brasil (Maceió, Recife e depois Rio de Janeiro). Em 1937, estabelecida no Rio de Janeiro, Clarice inicia o curso de licenciatura em Direito e em 1940 começa a publicar na imprensa os primeiros contos. No mesmo ano, introduz-se como repórter na Agência Nacional. Em 1943, casa com um colega de curso, Maury Gurgel Valente, e a partir de 1944 sai do Rio de Janeiro para acompanhar o marido, que se torna diplomata. Belém (Brasil), Nápoles (Itália), Berna (Suíça), Torquay (Inglaterra) e Washington (EUA) são as cidades onde residiu ao longo das diferentes missões diplomáticas do marido. Em 1959, regressa definitivamente ao Brasil e já sem casamento. Passa então a marcar presença na imprensa com as suas crónicas femininas, assinadas com pseudónimos. O restabelecimento no Brasil coincide com um período de grande maturidade literária. Em 1966, deflagra um incêndio no seu apartamento, o que provoca gravíssimos transtornos e a leva a uma nova atitude na escrita. Entre 1967 e 1973, colabora com a publicação de uma crónica semanal no Jornal do Brasil, revelando-se a coletânea das suas diferentes crónicas um importante testemunho da evolução do seu pensamento como mulher e escritora. Em 1977, dá a sua única entrevista à televisão, na qual reitera a força e o rasgo das suas ideias, embora já visivelmente com uma clara fragilidade física. Nesse ano, um dia antes do seu aniversário, a 9 de dezembro, morre vítima de um cancro no ovário.
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