«Nada é de graça.» Uma das constatações que podemos ler entre as palavras de Etty Hillesum, autora de Cartas 1941-1943, livro que reúne um conjunto de missivas inéditas de, a e sobre Etty Hillesum, singularíssima, com uma voz única e por sinal atual neste século XXI periclitante, exigente, até exasperante.

Etty Hillesum nasce no dia 15 de janeiro de 1914, na Holanda, no seio de uma família judia então integrada na burguesia judaica de Amesterdão. Aos 29 anos, dois meses depois de ter sido deportada, juntamente com seus familiares, para Auschwitz, na Polónia, Etty Hillesum morre. Perto dessa reta final, aos 27 anos, recorre ao psicanalista Julius Spier, um dos destinatários mais frequentes das cartas que endereçou, responsável pela sua radical mudança de vida e a entrada num caminho fértil de espiritualidade.

A partir do espaço ao qual estava circunscrita, exíguo, frio e inóspito, e onde se entregava a «ler e a escrever à luz de um candeeirinho», Etty Hillesum escrevia a Julius Spier, a familiares e amigos. Nessas cartas, encontramos passagens dignas de nota e que surgem como uma importante bússola e uma chave interpretativa para qualquer um de nós, nas nossas circunstâncias mais ou menos pesadas. Depois de lermos Etty Hillesum, ganhamos um argumento indestrutível para passarmos a viver radicalmente. Exatamente como somos. No melhor de nós. Para a autora, há uma convicção profunda segundo a qual «os factos não interessam realmente na vida, apenas aquilo em que nos tornaram».

A mulher cuja vida se liquefez no cenário de um campo de concentração, diz-nos: «Devemos aspirar deixar de ser tão egocêntricos, deixar cada disposição seguir o seu caminho dentro de nós, sem interferir. Não temos de esconder a nossa inquietação e tristeza de nós próprios, devemos carregá-las e suportá-las, mas não entregar-nos completamente a elas, como se nada mais existisse no mundo». De acordo com Etty Hillesum, a extraordinária «capacidade de lidar com o incompreensível» advém da sua crença consolidada de que «o ser humano possui uma faculdade para cada acontecimento que o ajuda a superá-lo». «Como se o sofrimento – assuma ele a forma que assumir – não fizesse também parte da existência humana», diz-nos.

Outra das ideias essenciais que Etty Hillesum nos deixa é a de que em circunstâncias difíceis e, até mesmo na vida (simplesmente), «não basta ser-se um político competente ou um artista talentoso. Nas situações mais extremas, a vida exige algo completamente diferente». E remata: «Sim, é verdade, os nossos últimos valores humanos estão a ser postos à prova».

«A desgraça neste local já ultrapassou de tal forma os limites da realidade que se tornou irreal», refere a autora a propósito de Westerbork, o campo de concentração, num raciocínio de interpretação da própria vida e do próprio tempo. Ainda assim, para Etty Hillesum, as pequenas coisas continuaram até ao último momento a ganhar a maior importância. Vemo-lo numa passagem contada a Maria, uma das amigas destinatárias das suas cartas: «Esta manhã apareceu um arco-íris sobre o campo e o sol brilhou nas poças de lama. Quando entrei no barracão-hospital, algumas mulheres perguntaram-me: “Traz boas notícias? Vem tão alegre”. Ponderei contar uma pequena história sobre Victor Emanuel, sobre um governo popular e sobre uma paz que se aproximava; afinal, não podia despachá-las com aquele arco-íris, não é? Embora fosse essa a única razão da minha alegria».

Para além da beleza contida na simplicidade, da fortaleza interior para fazer face à mais avassaladora tragédia e da apologia convicta do amor e da crença na humanidade, Etty Hillesum, na sua sabedoria inacreditavelmente consolidada até aos 29 anos com os quais morreu, recorda-nos que o «importante não é crescer o mais depressa possível, mas sim progredirmos lentamente». E apesar de todas e quaisquer dificuldades. Talvez possamos fazer nossa esta chave para os tempos que correm.

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