1. O ano em que visito, pela primeira vez, o Rio de Janeiro. Levava comigo um guia de viagem que havia preparado com as minhas leituras, pesquisas, pensamentos. No meio de um dos livros que lera, encontravam-se as referências literárias do século XX brasileiro e, entre elas, Clarice Lispector em destaque. Um nome de que nunca ouvira falar, confesso, até esse momento. Mas o rosto de Clarice foi certeiro na forma como olhou para mim. E, hoje, passados 10 anos, não tenho a menor dúvida de que é Clarice que escolhe os seus leitores.

Antes de chegar ao Rio, passei uns dias na esmagadora São Paulo, onde me estreei na Livraria Cultura, na Avenida Paulista. Aí interpelei quem me atendeu: «Não conheço nada de Clarice Lispector e morro de curiosidade. Começo por onde?». E a resposta segura que recebi foi: «Comece pelo último, A Hora da Estrela». De lá trouxe também Felicidade Clandestina, um pequeno livro de contos. Ambos da Editora Rocco. O meu fascínio pela autora era já demasiado, mas não cabia ainda nele a capacidade de a ler. Demorei cinco anos para a conseguir ler e, talvez por ter resistido estoicamente, Clarice nunca tenha desistido de mim. No Skye Bar do Hotel Unique, iniciei uma conversa com um grupo de amigos brasileiros, à qual demos seguimento num outro dia na Vila Madalena. Dois cenários completamente diferentes serviram de inspiração à troca de referências culturais lusófonas. Depois de Fernando Pessoa, pedi-lhes que me falassem de Clarice. Fiquei encantada a ouvi-los.

No Rio, recordo-me de ter chegado ao Morro da Urca, aquele andar intermédio a caminho do Pão de Açúcar, e, numa tarde de sol, iluminadíssima, desembocar num espaço de restauração sofisticado que estava a ser ultimado para um evento, ao som da Garota de Ipanema, na versão de Tom Jobim e Vinicius de Moraes. Esta cena apagou todas as outras vezes que a ouvira. Como se tudo começasse, ali, de novo. Tom Jobim e Vinicius de Moraes eram dois dos homens que Clarice tanto admirava. No Leme, onde Clarice viveu depois de, com 39 anos, ter regressado de vez ao Rio, imaginei-a a passar, com o seu ar misterioso e, como a esfinge que visitou no Egipto, indecifrável. No Jardim Botânico, onde Clarice entregava horas ao tempo, procurei contemplar o espaço como ela o fazia e como ela nos deixa a nós a indagar quando lemos a sua obra. O que os seus livros nos provocam, no fundo, é a ilusão de que nos seus textos estamos na nossa própria vida e também à procura de respostas para a pergunta que, como ela, somos.

Entre esses cinco anos de ensaio, à procura de conseguir ler Clarice, recordo-me de visitar, na Fundação Calouste Gulbenkian, a exposição “A Hora da Estrela”, integrada nas comemorações do Ano do Brasil em Portugal. Saí com a impressão de quem foi a casa de uma amiga e com ela pôs a conversa em dia. Excertos da obra, entrevistas (as poucas que deu), objetos pessoais de Clarice davam corpo à experiência. Foi ali a primeira vez que assisti à entrevista, na íntegra, que Clarice deu à TV Cultura, pouco tempo antes de morrer, em 1977. Após a exposição, comprei A Paixão Segundo G.H., uma das obras mais icónicas do século XX e que mais influencia o meu itinerário literário. Quando li este livro, já me sentia avançada na descoberta de Clarice, ainda que consciente de que Clarice é para uma vida inteira. No momento em que vislumbramos Clarice por inteiro, entendemos que é indecifrável e que todas as respostas a que cheguemos sobre ela serão finitas para a pergunta infindável e constante que se situou em torno dela.

Pelo meio li alguns dos contos que havia trazido do Brasil e descobri intervenções online de um dos biógrafos mais reconhecidos de Clarice, Benjamin Moser, cuja biografia traduzida para o português, Porquê Este Mundo – Uma Biografia de Clarice Lispector, li de fio a pavio em poucos dias. Através desta leitura, fiquei por dentro de alguns dos contornos do início de vida de Clarice, na sua frustração de ter nascido para uma missão que não cumprira (curar a própria mãe), e de toda a trajetória que faz até chegar ao Brasil; da autoconsciência que vai ganhando sobre o ofício da escrita e das suas leituras mais emblemáticas, como O lobo das estepes; do perdão que não se deu nunca à «inconveniência de escrever»; do sucesso do primeiro livro, Perto do Coração Selvagem e da angústia de publicar; da não correspondência amorosa de Lúcio Cardoso e do casamento com o colega do curso de Direito, Maury Gurgel Valente; da distância e da angústia de acompanhar o marido em carreira diplomática; do regresso ao Rio e dos sucessivos livros e das crónicas e das traduções para ganhar a vida; dos filhos e da máquina de escrever no colo; da importância das empregadas; da sua componente mística, típica da cultura judaica, e da lenda em que se tornou e da forma como a sua obra é plataforma para uma reflexão filosófica da vida, numa resposta ontológica à letra a Proust, Kafka, Joyce ou Woolf. Desde então vou ouvindo e lendo Benjamin Moser, na esperança de que nos traga sempre algo de novo.

Se me perguntarem, no entanto, por que livro de Clarice começar, direi hoje com a máxima convicção: pelas crónicas. No livro A Descoberta do Mundo, encontram-se reunidas por ordem cronológica todas as crónicas publicadas no Jornal do Brasil, entre 1967 e 1973. Nas centenas de páginas que compõem esta coletânea, entramos no pensamento de Clarice e acompanhamos a evolução das suas ideias, entre abordagens só aparentemente superficiais, muitas delas carregadas de humor (um dos elementos de que pouco se fala quando se fala de Clarice). Num registo mais leve, e com a curiosidade da abordagem atrás dos vários pseudónimos usados por Clarice (Helen Palmer, Tereza Quadros e Ilka Soares), podemos ler Correio para Mulheres, uma agregação das crónicas publicadas, desde o tempo de faculdade até ao fim da carreira, para alimentar a leitura feminina e sintetizar as condições de um «lugar bom para “ser”».

Mais recentemente, numa sessão comemorativa do Teatro São Luiz, tive o privilégio de conhecer Carlos Mendes de Sousa, professor na Universidade do Minho e um dos maiores especialistas de Clarice no mundo. Assim como a obra de Clarice nos cria a vertigem de estarmos nós próprios no seio da narrativa clariciana, também ao escutar Carlos Mendes de Sousa senti que estava no pensamento de Clarice. No final, dirigi-me a ele e apresentei-me como uma leitora simples mas muito apaixonada de Clarice. Desde então, trocamos impressões e são para mim preciosas e inestimáveis as suas palavras. Clarice tem o mérito e o dom de promover estes encontros.

Nesta pandemia, situei-me no início. Li, finalmente, o seu primeiro livro publicado, reconhecido com o Prémio Graça Aranha, Perto do Coração Selvagem. Pelo que entretanto tenho lido entre as suas cartas, Clarice teve consciência e o receio de que neste seu primeiro livro estivesse a sua obra toda, com o que isso tem de bom e de mau. Nesta sua primeira obra, Clarice esboça um «contorno à espera da essência», numa apetência, não negociável, para os limites, dado que a sua personagem principal, Joana, nascera «para o essencial, para viver ou morrer». E é nessa fronteira entre o que está do lado de cá e o que está no de lá que Clarice chama a «perfeição de Deus» para a localizar «mais na impossibilidade do milagre do que na sua possibilidade». Por estes dias, li também Laços de Família, um dos mais importantes livros de contos de Clarice, com a relevância que o conto tem na sua obra. Algumas das temáticas nevrálgicas da escritora brasileira estão nos seus contos: o ovo e a galinha, linhas de fronteira, confrontos familiares, ausências e presenças… Na edição que li, do Curso Breve de Literatura Brasileira, da editora Livros Cotovia, ganhamos nas últimas páginas um retrato dos contos e da autora, assinado por Carlos Mendes de Sousa.

Na Livraria da Travessa, no Príncipe Real, tenho encomendado várias edições brasileiras que me têm permitido fazer a extensão das minhas referências sobre Clarice, caso de Entrevistas, uma reunião das suas conversas com as personalidades brasileiras de grande prestígio do seu tempo; Clarice Fotobiografia, de Nádia Battella Gotlib; Todas as Cartas; ou O Rio de Clarice, de Teresa Montero.

Os textos de Clarice, tantas vezes difíceis de arrumar num único género (como Clarice é impossível de classificar ou arrumar num único estilo), chegam-nos às mãos como um antídoto face à banalidade do que tantas vezes por aí circula com a máscara de literatura. A mulher/autora que, a ser decifrável na sua totalidade, levaria a que tivéssemos descoberto até o próprio universo, disse um dia que «é horrível a gente já estar completa». E é nessa busca ininterrupta por uma infinita descoberta e nesse molde para o ser humano que Clarice surge, simultaneamente, como pergunta e resposta. E um milagre.

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