Para além de uma obra composta por romances, contos e crónicas que se tornaram referência incontornável na literatura brasileira do século XX, Clarice Lispector traduziu várias obras e entrevistou dezenas de personalidades de prestígio. No livro Entrevistas, da editora Rocco, encontramos coligidas várias dessas entrevistas, entre as quais ao Prémio Nobel da Literatura, seu amigo, Pablo Neruda, que lhe diz que todos somos Deus «algumas vezes».

Entre os entrevistados brasileiros, contam-se nomes das mais diferentes artes e atividades, numa abordagem multidisciplinar muito interessante e num retrato do pulsar do Brasil da época. E o que poderá ainda inquietar-nos mais é o modo de perguntar de Clarice e as respostas que dela encontramos entre as questões devolvidas. Com muitos dos entrevistados, Clarice mantinha uma relação sólida de amizade e, por isso, cada entrevista surge como uma conversa. Daquelas em que o tempo sai de cena, para privilegiar o encontro.

Conforme nos recorda um dos entrevistados, Nelson Rodrigues, escritor, cronista inconfundível, «o que conta na vida são os momentos confessionais». O mesmo acontece em contexto de entrevista. Nestas, em particular. Nesta linha, Érico Veríssimo, escritor e padrinho dos filhos de Clarice, diz declaradamente que não é profundo e que espera ser desculpado por isso. Sobre Rubem Braga, escritor e fundador da Sabiá (que editou Clarice), a nossa entrevistadora refere-se ao «mistério que está na sua simplicidade – e simplicidade é das coisas mais raras no ser humano, a ponto de constituir uma qualidade insólita». Com a primeira mulher que assumiu a presidência da Academia Brasileira de Letras, Nélida Piñon, Clarice faz uma reflexão sobre o livro e o processo de escrita e retira sobre a vida humana a certeza de que não se cinge «apenas à biografia oficial, ao retrato três por quatro».

Passando para a área da música, Clarice arranca a Chico Buarque uma passagem deliciosa em que ambos falavam de Villa-Lobos a propósito de uma frase que Tom Jobim contou: «diz que Villa-Lobos estava um dia trabalhando na casa dele e havia uma balbúrdia danada em volta. Então o Tom perguntou: como é, maestro, isso não atrapalha? Eles respondeu: o ouvido de fora não tem nada a ver com o ouvido de dentro». E porque as conversas não ficavam apenas no domínio das artes e da literatura, com Vinicius de Moraes, Clarice falou de Marilyn Monroe, a quem o poeta da Bossa Nova se referiu como «um dos seres mais lindos que já nasceram», assumindo que casaria com ela mesmo sabendo que não daria certo, dado ser «difícil amar uma mulher tão célebre». Com Tom Jobim, fala da exigência que vem com a maturidade e da importância de preservar a alegria através dos artistas. Com estas e tantas outras figuras do seu tempo, Clarice passou a vida a pente fino.

Mais do que um género jornalístico, a entrevista encabeçada por Clarice é uma arte de interagir com o interlocutor. Renega quaisquer armadilhas ou ferramentas do estilo típico dos repórteres e, dada a abordagem seguida pela autora, cada entrevista constitui uma peça literária. Sem distância ou imparcialidade. Ao emitir opiniões próprias, entre perguntas e respostas, Clarice revela também o seu pensamento e a sua alma. E numa das suas crónicas em que revisita o processo da entrevista, Clarice chega a caracterizar-se e a revelar-se talhada para o género: «sou uma pergunta».

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