C om que palavras se escreve uma boa história? E como contá-la a uma criança? E a várias? Lara Xavier, autora de livros infantojuvenis e dinamizadora de iniciativas de promoção da leitura, aguça-nos a curiosidade e o interesse. Nascida em Angola e com uma experiência de residência na Holanda, Lara Xavier vive atualmente em Portugal e na sua atividade profissional já editou livros escolares e assinou mais de duas dezenas de títulos infantis, como Descobre Outra Vez o 1 2 3, Com Muita Pinta, Conta e Lê o ABC, Ter Um Irmão É, O Rabo do Esquilo ou Nunca Digas Nunca, tendo este último recebido o prémio António Quadros. Continua hoje a dividir-se entre a escrita, a edição e a tradução. Chego à Lara Xavier através da extraordinária página de Instagram de Rodrigo Leme da Silva, Rodrisilva.Kids, num dos seus encontros com personalidades multidisciplinares para um crescimento saudável, equilibrado e feliz. Dessa vez, com Lara Xavier. Quando a ouvimos, salta-nos à vista o que pode fazer catapultar uma criança para a leitura. E como cada criança investida para o hábito de ler, afinal, pode impactar decisivamente um futuro que a todos pertence.
Vamos às primeiras memórias: nasceu em Angola. Que influência considera ter tido a experiência de África na sua capacidade inequívoca para contar?
Saí de Luanda em Junho de 1975, tinha quatro anos, e por isso as minhas memórias de Angola são bastante vagas. É uma confusão entre a realidade que vivi, a que imaginei fruto do que me contaram, das fotografias que me colocam em sítios onde sei que estive. Tive a sorte de viver duas infâncias muito diferentes nas duas metades da laranja que é o planeta Terra, de provar o sumo dos dois lados desta laranja e essa combinação é que deve ter sido a poção mágica que me fez contadora de histórias. Voltei a África várias vezes e muitas delas a Angola, e apesar de me sentir daquela terra e pertencer à história de uma determinada época daquele país, a influência mais determinante para contar esteve sempre e desde o princípio dentro de casa, e muito mais em Portugal.
Que histórias lhe contavam na infância? E que impacto podem essas histórias ter nas histórias que publica?
Em minha casa sempre houve muitos livros. A minha mãe gostava muito de poesia e escolheu o meu nome por causa da poetisa Alda Lara, o que me dá esta sensação de predestinação para as letras. Aprendi a ler os livros, sem saber ler, com a minha mãe. Livros de plástico no banho e livros de pano fora dele para aprender a folhear sem estragar porque os livros, para além do seu objetivo de ensinarem e de divertirem, eram tratados como bibelots em minha casa, para serem alinhados nas estantes e admirados. Logo que o controlo da motricidade me permitiu não estragar os livros ganhei-os por direito. Foram os livros da Anita que me completaram os dias e dos quais me lembro melhor quando ainda estava em Angola. A minha mãe lia-os e eu sonhava que era a Anita. Este viver e ser a personagem dos livros, que mais tarde se consolidou com as aventuras d’ Os Cinco, entre outros, influenciou os personagens que crio e a necessidade de torná-los reais de forma a permitir que quem me lê se sinta personagem e viva a história para lá do livro.
Quando surgiu pela primeira vez a vontade de escrever histórias para crianças?
Desde que sei escrever que poder fazê-lo se tornou um hobby, uma atividade para fazer nos tempos livres, uma oportunidade de viajar para outras terras, tornar-me outra pessoa e conhecer outras gentes. Assumir que escrever seria uma profissão não era uma hipótese, era como se tivesse de deixar de fazê-lo pelo prazer que me dava. Quando percebi que era divertido independentemente de ter decidido fazê-lo porque me apetecia ou porque tinha um artigo, uma crónica, uma história ou um livro encomendado foi surpreendente. Tão surpreendente quanto perceber que sempre que fecho os olhos e deixo uma história desenrolar-se na minha cabeça, como se desenrolasse um fio, imagino uma plateia de crianças curiosas, que me fazem perguntas que me alimentam a história. Esta curiosidade, a expectativa do que vai acontecer a seguir sem exigência, a capacidade de aceitar a história e vivê-la com uma honestidade genuína incapacita-me de escrever para adultos da mesma forma que escrevo para crianças. Praticamente tudo o que escrevi até surgir a oportunidade de entrar num concurso de literatura infantil foram histórias para crianças. Foi uma vontade que nasceu sozinha e naturalmente.
O meu processo criativo passa sobretudo pela observação. As ideias nascem-me do que vejo e mesmo que tenha um tema específico sobre o qual tenho de escrever preciso de observar crianças dentro desse tema, registar as suas reações, as suas emoções, as suas palavras.
Do seu ponto de vista, o que é uma boa história? Qual o processo criativo que dá origem ao argumento?
Todas as histórias são boas, embora para cada história haja um público diferente, como as tampas para as panelas… Eu sinto que escrevi uma boa história quando chego ao último ponto final, releio a história e sinto um arrepio de orgulho por estar bem escrita, uma espécie de inveja de mim própria. Tenho para mim, desde que comecei a escrever histórias, que se eu não gostar muito da história que escrevi não posso esperar que mais alguém goste. Quando leio a história a alguém que faça parte do público para quem a escrevi e vejo pela reação que também gostou, confirmo que fiz um trabalho bem feito. O meu processo criativo passa sobretudo pela observação. As ideias nascem-me do que vejo e mesmo que tenha um tema específico sobre o qual tenho de escrever preciso de observar crianças dentro desse tema, registar as suas reações, as suas emoções, as suas palavras. Começo com um personagem e descrevo-o e caracterizo-o mesmo que não vá utilizar essa descrição na história, depois uma frase que coloque o personagem na história e uma moral para a história. Tudo se desenrola a partir daqui.
Começar por “Era uma vez…” continua a ser uma boa técnica para efabular?
É a melhor técnica jamais inventada. Depois disso, tudo se simplifica, basta um espírito curioso, uma série de perguntas, que fazem nascer outras, e as respostas que se vão inventando vão criando a história quase sem darmos conta.
Era uma vez… O quê?
Era uma vez… Quem?
Era uma vez… Quando?
Era uma vez… Porquê?
Escrever uma história é como cozinhar… Juntam-se ingredientes, umas especiarias, descrevem-se cores, cheiros e sabores, e no fim serve-se o nosso melhor prato. E se não for o melhor, aproveitamos a oportunidade para fazer melhor da próxima vez.
Uma história para crianças é um diálogo permanente com as ilustrações do livro. Como se constrói esse trabalho de equipa entre o autor e o ilustrador?
Um livro infantil tem dois autores. Um escreve a história e o outro desenha-a. Normalmente, a história escrita surge antes da história ilustrada, mas também pode acontecer o contrário. Às vezes faz sentido que os dois trabalhem em conjunto e prepararem um storyboard consensual, outras vezes o ilustrador interpreta a história com a orientação do escritor mas sem a obrigação de seguir o que o escritor tinha em mente, e outras vezes o ilustrador não interage com o escritor e interpreta, cria e materializa a história num processo criativo autónomo. Qualquer das estratégias resulta. É um trabalho que se complementa e completa não sendo obrigatoriamente um diálogo explícito. A criatividade tem destas coisas…
Para além de escritora, é também uma excelente contadora de histórias. Lê muito bem, com a entoação certa para cada palavra e o jeito próprio para captar a atenção dos mais novos (esse público tão exigente). Como é que isso se faz?
Faz-se sem julgamento do que se está a fazer, sem vergonha de nós próprios, sem medo de errar, sem embaraço pela figura, pela voz ou pelos gestos. Faz-se com o corpo todo. É uma entrega da primeira à última palavra. É dar para receber… a atenção, a gargalhada, a lágrima, o amuo, o espanto, a surpresa, as palmas…
Partilhar uma leitura em voz alta, seja como leitor ou como ouvinte, torna-nos cúmplices de uma história, permite-nos comunicar sobre ela. Dificilmente nos esquecemos de uma leitura partilhada. É uma memória que se cria para sempre.
Em cada ano, no dia 1 de fevereiro, celebra-se o Dia Mundial da Leitura em Voz Alta. Dizem os investigadores que são muitas as vantagens de ler alto. Quais são as que nomeia?
Quando duas pessoas, ou mais, se sentam para partilhar qualquer coisa há uma ligação que se cria, um laço que une. Partilhar uma leitura em voz alta, seja como leitor ou como ouvinte, torna-nos cúmplices de uma história, permite-nos comunicar sobre ela. Dificilmente nos esquecemos de uma leitura partilhada. É uma memória que se cria para sempre. Depois temos todas aquelas coisas óbvias mas tão importantes, como a melhoria da dicção, o ampliar do vocabulário, o desenvolvimento da atenção, da capacidade de concentração e da capacidade de expressão… E podia continuar…
Nos périplos pelas escolas para apresentar os seus livros, dinamiza sessões de leitura com os alunos. Qual a abordagem para envolver a comunidade escolar nessa prática tão “beliscada” pela ditadura dos ecrãs?
Eu trabalho com um público muito disponível para o cumprimento de regras, que se deixa levar, muito facilmente, pelo exemplo. Eu não uso ecrãs, eles também não. Eu estou ali para eles e eles percebem, e ficam ali para mim. Eu mantenho os olhos postos neles e eles mantêm os olhos postos em mim. O entusiasmo com que falamos com as crianças desperta-lhes a curiosidade e a atenção. Se eu disser que ler foi a melhor coisa que me aconteceu na vida, com a certeza de que, de facto, foi a melhor coisa que me aconteceu na vida, eles acreditam e também querem. Se eu cheirar um livro e disser que não há cheiro melhor do que o de um livro novo eles querem cheirar um livro novo e sempre que tiverem um livro novo na mão vão cheirá-lo.
Não podemos exigir a um filho que leia se ele nunca nos tiver visto com um livro na mão. Não podemos esperar que ele corra para a livraria se nunca tivermos corrido até uma livraria com ele. Não podemos esperar que se perca entre os livros e procure o livro certo se nunca lhe tivermos mostrado como é divertido fazê-lo.
Nos seus diferentes livros, assistimos à conjugação de um argumento lúdico que se propõe sempre ensinar qualquer coisa. O que retira da experiência de edição de manuais escolares para os conteúdos e os registos certos para cada idade?
Trabalhar com manuais escolares foi dos maiores privilégios que tive na vida. Sentia-me a contribuir para a educação de um país. Toda a experiência adquirida nesses anos e o contacto com autores, revisores científicos e pedagógicos, consultores, professores, educadores ajudou-me muito na adequação do trabalho à realidade, no reconhecimento da importância da sua qualidade, do rigor na informação, séria ou lúdica, quando se ensina e se educa.
Do seu ponto de vista, como se enraíza a leitura nestas gerações de crianças profundamente marcadas pelo texto ziguegagueante do digital?
Sem dúvida, através do exemplo. Não podemos exigir a um filho que leia se ele nunca nos tiver visto com um livro na mão. Não podemos esperar que ele corra para a livraria se nunca tivermos corrido até uma livraria com ele. Não podemos esperar que se perca entre os livros e procure o livro certo se nunca lhe tivermos mostrado como é divertido fazê-lo. Não nascemos leitores, aprendemos a sê-lo.
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