Há dias fui ao teatro ver Kilimanjaro, uma peça com dramaturgia e encenação de Rodrigo Francisco e belíssima interpretação a cargo de alguns atores da TV, como Pedro Lima, a partir de Ernest Hemingway, Prémio Nobel da Literatura em 1954. Ir ao teatro, confesso, é coisa que não fazia há uns bons tempos. E, a voltar, decidi que teria de ser ao Teatro Municipal Joaquim Benite, onde me habituei a ir ao Festival Internacional de Teatro de Almada, uma das atividades artísticas e culturais mais emblemáticas do nosso país e do qual fui espectadora assídua pelo menos durante os meus últimos anos de estudante ainda com extensíssimas férias de verão a permitirem-no. Que saudade! Nesta peça em concreto, Kilimanjaro, Harry está à beira da morte em África e é nesse estado, depois de uma vida pejada de experiências de bom vivant, viagens, mulheres, dinheiro, fama e a escrita no horizonte, que reflete sobre a importância da vida, o nada que em tudo está e o que fica no fim. kilimanjaro, no teatro municipal joaquim benite
Sempre ao lado da sua esposa Helen, que não ama. Na sua reflexão lúcida de final de vida, vê-se refém de projetos fúteis sem capacidade para mudar o mundo e as pessoas e culpabiliza-se pelo hedonismo que atraiçoou o seu talento. Inspirada no conto de Hemingway, As neves do Kilimanjaro, esta peça de teatro retrata o pensamento de balanço de vida que o próprio Hemingway fez e em que se pergunta o que seria feito de si se cedesse antes à tentação de uma experiência ociosa e cheia de caprichos… Este personagem, um alter-ego de Hemingway, acaba por concluir que em muito terá desperdiçado o seu talento, ainda para mais acreditando ele que «o nosso talento consiste na vida que levamos» (fala de Harry, em As neves do Kilimanjaro). Acrescidos ao conto do escritor norte-americano surgem na peça Kilimanjaro estilhaços de outros contos e cartas do autor, servindo de referência ao percurso retratado de Hemingway, desde a adolescência à fase adulta, com romances falhados, as Grandes Guerras Mundiais e a Guerra Civil Espanhola pelo meio. A tentativa de, no final da vida, encontrar um sentido para uma existência com diversas crises de identidade, é feita à luz de memórias de África, dos Estados Unidos, de Itália e Espanha. Esta busca existencial anda a braços com a carcaça de um leopardo encontrada gelada no topo do kilimanjaro – a mais alta montanha de África – e a que Hemingway recorreu como epígrafe no conto. A verdade é que ainda hoje não é sabido o que andava o leopardo à procura a tal altitude. Na peça, Harry parece resolver as questões existenciais não resolvidas com um tiro de carabina, como o próprio Hemingway, um dos primeiros escritores vedeta do século XX, o fez.
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