Assisti no Cinema Ideal à exibição daquele que poderia parecer infilmável. Mais do que isso, intocável: o livro A Paixão Segundo G.H., de Clarice Lispector (1920-1977). Levou-o à tela o também brasileiro Luiz Fernando Carvalho que, enquanto se dedicou num momento anterior à realização do romance de Raduan Nassar, Lavoura Arcaica, encontrou em G.H. a espessura de que precisava para dar corpo a parte da “lavoura”, abrindo aí a raiz para levar também o título clariciano ao cinema.
A sessão em que estive atraiu uma plateia de seguidores visivelmente conhecedores da obra de Clarice e contou, no final, com a presença de Luiz Fernando Carvalho à conversa com a jornalista Isabel Lucas. Seria um filme infilmável? Foi lançada a pergunta que levou o realizador a deambular pelo afeto de sempre que tem pelas palavras. Palavras que usou de forma incisiva para esclarecer: «[Gilles] Deleuze, num livro sobre Kafka, pergunta para que serve a literatura. E disse: a literatura serve para ver e ouvir, é um suporte audiovisual, serve para ser lida, vista e ouvida».
Ficámos com a clareza da natureza da matéria-prima que temos entre mãos e que mereceu, na sua leitura de realizador, a melhor atenção para Janair, a empregada. Mesmo que a contraciclo, já que poucos [críticos] pegaram em Janair. Desta obra, sai um discurso absolutamente radical, contra todos os sistemas patriarcais, desde logo machistas. Contra a indústria: «a indústria cultural contemporânea está compactuada com um sistema hegemónico, para que a “coisa” seja interiorizada pela maior parte das pessoas. Está tudo nivelado por esse padrão que o mercado promoveu. Mas todos nós somos diferentes».
Janair é colocada aos nossos olhos, neste filme, como «uma figura encharcada de poder espiritual e filosófico». A inscrição deixada a carvão pela Janair, no quarto, é um «monólogo que fez G.H. refém do desafio de tirar os invólucros todos, das várias personagens que G.H. carregava». O que Luiz Fernando Carvalho no diz, pois, é que esta não é uma literatura de estrutura ocidental. E avisa: «É um texto herético, que cobre todas as cercas com grande veemência».
Ainda que se debruce sobre esta história de desdobramentos das pessoas que contemos dentro, A Paixão Segundo G.H., o filme não tem roteiro, guião. «Eu próprio estive na câmara. Em que momento é que a atriz [Maria Fernando Cândido] virou G.H.? Toda a equipa estava vidrada nisso». E prossegue: «Eu não estou a filmar aquilo sozinho, mas vou pela mão da história», alega o realizador.
Nesse bordado narrativo, vai desenhando e consolidando o corpo argumentativo. «Tudo é corpo. O sistema ocidental incutiu-nos que o corpo é diferente da alma. O corpo dos indígenas brasileiros, africanos. Aqui tudo é corpo». Para o realizador, aliás, a palavra é um corpo. E o cinema vem, justamente, «reivindicar o espaço da palavra, destruindo a hierarquia entre o corpo e a palavra. A linguagem é uma polifonia, agregadora de todos os territórios, sem disputas de territórios».
Este filme é uma tomada de consciência da relação entre exploradores e oprimidos. A camada sociológica do romance existe, sempre esteve nas entrelinhas, «mas talvez causasse em alguns leitores uma espécie de apagamento». A verdade é que Clarice evoca ali, como noutras obras, a luta de classes. «E, hoje, o racismo no Brasil continua em vários lugares, na linguagem».
O dia em que fui ver o filme estava virada do avesso, por algo possivelmente estragado que havia comido. Mas fui. Quem simpaticamente me avisou que o filme estaria por aqui foi Nádia Battella Gotlib, uma das grandes investigadoras de Clarice no mundo e que assegura a revisão do texto, no filme. Também uma das pessoas que tive o privilégio de entrevistar. Clarice tem este efeito mobilizador sobre os seus fiéis leitores. Não há como explicar por palavras e por isso escreve-se. Se é que me faço entender. Além disso, o livro a partir do qual o filme parte é, se pudermos colocar as coisas nestes termos, o livro que elejo quando me perguntam qual o livro que mais gostaste.
A Paixão Segundo G.H. retrata uma mulher bem-sucedida que se lança na procura existencial da própria identidade. A narrativa é anódina: depois de demitir uma empregada doméstica interna, G.H. entra no quarto que a aquela ocupava para iniciar uma limpeza de fundo e defronta-se com uma barata. Aí, nessa barata, encontra a razão de viver. Clarice Lispector transforma esta trama narrativa simples e aparentemente pobre numa profundíssima reflexão existencial, inspirada no existencialismo de Jean-Paul Sartre.
Este foi o primeiro livro em que Clarice escreveu na primeira pessoa. Há uma “presentificação” do eu. No filme, essa perspetiva materializa-se «numa espécie de generosidade ótica, num close up dado pela grande angular sobre a cara e, ao mesmo tempo, um desfoque nos lados». E esta desorganização do retrato bonitinho da foto tipo passe desconstrói a geografia do lugar. E essa desconstrução é um passaporte seguro para (re)ganhar direção.
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