Este fim de semana, tive um duplo privilégio: 1) entrevistar uma terceira vez o ultramaratonista João Netto, primeiro português (ao lado de João Bandeira Santos) a participar na exigentíssima Maratona do Polo Norte; 2) e entrevistar João Netto no contexto do evento anual da Comunidade Vida e Paz, uma das instituições enraizadas na sociedade portuguesa com obra digna de nota, há perto de 30 anos ao inteiro serviço da comunidade humana.

O evento estava desenhado para a celebração dos mais de 600 voluntários da Comunidade Vida e Paz. Através de palestras, sessões de team building e momentos de networking, estabeleceu-se como objetivo identificar fatores de motivação para quem, como os voluntários da Comunidade Vida e Paz, se empenha incondicionalmente ao serviço dos mais vulneráveis. Logo pela manhã, teve então lugar a conversa com João Netto, que eu tive a honra de conduzir.

Comecei por conhecer João Netto em abril deste ano, poucos dias decorridos da sua participação na Maratona do Polo Norte, numa outra conversa, num outro evento, que tive também a felicidade de moderar, nesse caso, ao lado de João Bandeira Santos. Percebi, de imediato, que João Netto tinha o perfil das pessoas que entrevisto para o Entre | Vistas: de um enorme valor, com os valores essenciais e com contributos dados numa área do saber. Desafiei-o para uma entrevista, que tivemos oportunidade de realizar, já aqui publicada. Recentemente, veio então este desafio maior: conversar com João Netto para a Comunidade Vida e Paz, numa sessão aspiracional, de incentivo aos voluntários que tantas e tantas vezes se veem a braços com a responsabilidade de contagiar e levar aquela esperança que faz ultrapassar tudo. Como no desporto.

Entre este e outros pontos comuns, quer às maratonas, quer à missão dos voluntários, a conversa com João Netto foi-se desenrolando, assente no pressuposto de arranque de que a maratona é uma missão que não se confunde com o simples ato de chegar à meta. Há uma motivação sempre maior do que o trajeto físico. João Netto explicou a razão pela qual as maratonas chegaram à sua vida há sensivelmente quatro anos, a assinalar uma espécie de recomeço. A verdade é que em 2013, quando participou pela primeira vez numa maratona, a Maratona de Lisboa, estava longe, muito longe da meta da Maratona do Polo Norte, que viria apenas a realizar em abril de 2017, com as condições excecionais que esta prova comporta: está referenciada internacionalmente como um dos eventos desportivos mais exigentes e espetaculares do mundo, com 13 voltas, 13 horas consecutivas em águas congeladas e temperaturas rondando entre os -40 e -50 graus. Dose…

E falamos de um amador, que corre à margem da sua atividade profissional. João Netto é gestor de topo no setor aguerrido das telecomunicações. O seu quotidiano faz-se a liderar pessoas, a construir projetos, mas sempre em contínua aprendizagem. Na conversa, também falou dessa dicotomia possível de estabelecer entre o desporto e a vida organizacional. Vivemos hoje um paradigma organizacional em constante mudança, em permanente crise e com fatores de imprevisibilidade grandes. O mundo está a mudar muito rapidamente e temos de acompanhar essa mudança. Por isso, nas organizações há uma tendência crescente para valorizar a versatilidade, o maior número de competências, a inteligência emocional… A participação na Maratona do Polo Norte ajudou a consolidar esse “mundo”, que João Netto já tinha, é certo, mas no qual continua a investir. Quer ser um profissional sempre melhor. E, por isso, corre, corre muito. Mas não confunde a maratona com a corrida de velocidade. Cada passo que dá parece avisado, embora apimentado com a aventura e o risco que os líderes sempre estão dispostos a assumir. João Netto é um líder. Provou-o mais uma vez nesta conversa.

O seu testemunho motivou, ali, uma das melhores perguntas, vindas da plateia (não necessariamente com estas palavras, mas com este sentido): «Que incentivos é que dá a pessoas como nós, voluntários, que todos os dias nos movemos para mudar o rumo dos mais vulneráveis e todos os dias constatamos que nada se altera, que os mais vulneráveis continuam a ser os mais vulneráveis?». Excelente pergunta. João Netto respondeu com uma profundíssima convicção: «Tentar, tentar sempre de novo». Com o dom da palavra, João Netto recorreu também nesta resposta às suas próprias histórias. Lembrou que, nos primeiros anos da sua atividade profissional, perdeu um negócio muito significativo, ao qual se candidatou estoicamente ano após ano e que, 19 anos depois, lhe foi finalmente parar às mãos. Integrou igualmente exemplos familiares, cujo valor não é mensurável nem traduzível, a não ser nas suas próprias palavras, no seu próprio sentir. Quem lhe fez a pergunta foi radiante ter com ele, no fim, a querer saber mais, a querer levar mais à Comunidade Vida e Paz.

João Netto permanece com o olhar sagaz de quem continua a aprender, quer no plano pessoal, quer no profissional. No olhar, para além da sagacidade, aloja o brilho de quem está bem, de quem dá à vida o troco certo. De quem vive ao ritmo que quer, de quem corre, como diz o ditado, por gosto. Os seus olhos não mentem. É essa ávida vontade de sair melhor, de chegar à meta, de vencer contra o que venha de adversidades que caracteriza o seu espírito inquieto. É um líder, já vimos. É um ultramaratonista, que se prepara para rumar, em novembro, à Maratona do Polo Sul. Não esperou pelo próximo ano. No mesmo 2017, chega de uma assentada aos antípodas. E diz: «Eu nunca vou sozinho». É um homem de fé. E é um homem feliz.

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