Li há dias que as duas principais cadeias de livrarias brasileiras, Saraiva e Cultura, entraram em processo de falência técnica, razão que levou Luís Schwarcz, editor da Companhia das Letras, a redigir uma bonita carta de amor aos livros. Será sempre incalculável o efeito dominó da falência deste setor no Brasil ou em qualquer outro país, porque será sempre incalculável o efeito da falência da leitura. E é este o ponto em que me foco sempre que trago um livro lido. A boa e incomensurável contaminação da leitura.

Neste último dia de 2018, mantendo uma tradição seguida no Entre | Vistas, faço o balanço dos livros lidos ao longo do ano. Na tentativa de fugir à mera exposição matemática, destaco os autores em que me estreei e que de uma forma ou de outra transformaram o meu ano. São eles Agustina Bessa-Luís, Dietrich Schwanitz, Etty Hillesum, Hermann Hesse, Karl Jaspers, Marcel Proust, Mário de Carvalho, Ondjaki e Rainer Maria Rilke. Repeti Marcelo Mirisola e dois dos autores aos quais sempre volto: Clarice Lispector e Tolentino Mendonça. Para mim, angulares.

De Tolentino Mendonça, li em 2018 o extraordinário Elogio da Sede, uma coletânea das reflexões que conduziu junto do Papa e da Cúria Romana, numa semana de exercícios espirituais preparatórios da Páscoa. Este ano, o Papa Francisco escolheu para o efeito um português, Tolentino Mendonça, entre os mais de 400 mil sacerdotes existentes em todo o mundo. Com o Elogio da Sede, também nós ficamos participantes deste importante encontro com o Papa. No livro, é desde logo traçado um caminho para o encontro com Jesus. A sua simplicidade, inteireza e misericórdia. A sua sede. E entre os elogios à sede, à boa maneira de Tolentino Mendonça, vão surgindo pedaços do pensamento de outros autores, num recurso calculado a citações sempre surpreendentes, avassaladoras, colossais. Com um propósito: avaliar o estado de maturação da nossa espiritualidade, do nosso mundo interior. E eis que chega a literatura como ingrediente fundamental, por três motivos essenciais: «(…) a literatura consegue gerar-se como metáfora integral da vida (…)»; «(…) a literatura dá-nos um conhecimento concreto, não conceptual (…)»; e «(…) a literatura é um instrumento de precisão (…)». E, nisto, Tolentino Mendonça cita uma página inteira de Clarice Lispector. Em frente ao Papa e à Cúria Romana. Simplesmente, delicioso.

É Clarice Lispector, sem tirar nem por, que sempre trago comigo. Em 2018, li Porquê Este Mundo – Uma Biografia de Clarice Lispector, de Benjamin Moser, que interpreta a vida extraordinária e fascinante, não linear nem óbvia, de Clarice. A vida da judia termina cedo, no dia 9 de dezembro de 1977, no contexto de uma doença cancerígena, fatal. Nessa data, de acordo com Moser, já era «uma das figuras míticas do Brasil», comparável com Kafka, Rilke, Rimbaud ou Heidegger. Tinha nascido no dia 10 de dezembro de 1920, numa Ucrânia incendiária, debaixo de uma guerra civil e com a sua mãe atirada a um inqualificável ato de violência perpetrado por pogroms. A brasileira naturalizada nunca regressaria a Tchechelnik, a cidade Natal. Entre hiatos sobre partes da sua vida e o sentido do mistério com que a própria se caracterizava, «nasceu uma mitologia», uma lenda maior do que Clarice. Clarice provoca em nós, permanentemente, a feliz sensação de podermos pensar em alguma coisa pela primeira vez. Está fora de qualquer ortodoxia. «Ela tem uma amplitude de capacidades intelectuais que é quase demasiado alargada para ser completamente utilizada», ditou um dos psicoterapeutas contactados por Clarice. Para além de tudo, Clarice é uma pergunta permanente. Uma apologia da ignorância, enquanto detonador de um entendimento maior. Portadora de uma criatividade vulcânica e de uma «beleza régia». «Em meados da década de 70, a reputação de Clarice como génio excêntrico, mais ou menos inadaptado à sociedade, tinha assumido proporções lendárias», escreve Moser.

Porventura também num rasgo de genialidade, surge-nos Agustina, que li pela primeira vez este ano. Agustina Bessa-Luís desobriga-nos de apresentações. N’O Livro de Agustina Bessa-Luís, pelo qual comecei, assinado pela autora num registo autobiográfico, está uma matriz do que é o ser humano, dos valores, das características de personalidade, do saber viver e da forma como se vive. Detetei, inclusive, uma espécie de paralelismo com as Memórias de Adriano, de Marguerite Yourcenar. Numa das últimas frases do livro, Agustina diz: «A verdadeira fase do que é humano nunca ninguém a viu». Agustina materializa uma tomada de consciência sobre a complexidade, a riqueza e a diversidade do ser humano. Simultaneamente, deixa-nos a convicção de que o «destino não é uma fatalidade, é um conflito breve com um sonho». E seguimos sonhando ao som das suas palavras.

O meu ano também se fez de Etty Hillesum, recorrentemente nas citações de Tolentino Mendonça. Foi assim, aliás, que a descobri. Carregada de autenticidade, profundidade e espiritualidade, a sua escrita pode chegar a influenciar a forma como olhamos, provavelmente, para tudo e para todos. Cada batida do coração, um pequenino livro com seleção e comentários de MichaelDavide, monge beneditino especializado na obra de Etty Hillesum, introduz-nos na vida da judia, nascida a 15 de janeiro de 1914, na Holanda, pertencente a uma família que se integra na burguesia judaica de Amesterdão. A mesma judia que morre aos 29 anos, dois meses depois de ter sido deportada, juntamente com a família, para Auschwitz, na Polónia. É a oração que dá a Etty Hillesum «(…) a esperança de se encontrar a si mesma e de recuperar aquele centro interior em torno do qual poderá reorganizar e pacificar a totalidade da sua vida». Apesar da barbárie que ela própria, enquanto judia, testemunhou. Etty Hillesum integra em si uma paisagem interior tão forte e firme, que as circunstâncias da guerra não só não lhe retiram verdade, como ainda a tornam mais real e verosímil.

Depois, de Angola, chega-nos o bom escritor que nos fala das pessoas do antigamente, que eram mais de chegar do que de partir, mais de encontros do que de despedidas: Ondjaki. Nascido em 1977, é já autor de várias publicações e reconhecido com vários prémios literários. Não o tinha lido até uma amiga mo recomendar e, generosamente, me emprestar para a primeira leitura Os da minha rua. Ondjaki transporta-nos neste livro, ao longo de 22 pequenas estórias, para um universo tão completo, um espaço simbólico da infância (a fazer recordar a nossa própria), onde de repente os cinco sentidos parecem multiplicados, os cheiros reforçados, a memória preservada. Numa espécie de escrita reconfortante (como o é a infância), o escritor lusófono remete-nos para o sorriso, a gargalhada, a descontração, a tranquilidade, a pureza, a transparência, endereçando um imaginário coletivo de valorização da família, da amizade, do sentido de comunidade, da pertença, da ligação, do abraço.

Em conversas sobre Ondjaki, recebi em seguida uma outra recomendação que me levou de novo ao escritor angolano: A Bicicleta Que Tinha Bigodes. Duas histórias convivem, neste outro título do autor, num fio condutor bem esculpido: o funeral do Sapo Raúl, que nos remete para uma menina Isaura, que atribui à bicharada nomes de presidentes de países por esse mundo fora e de outras personalidades importantes; e a candidatura ao concurso da Rádio Nacional de Angola, aberto a todos os seus ouvintes, cujo prémio para o primeiro lugar é uma bicicleta com as cores da bandeira angolana e uns bigodes (para os mais crentes na imaginação). Numa Angola em guerra, com a visita da luz das estrelas poucas vezes intercalada com a luz elétrica, Ondjaki diz que «(…) quando a luz vai na minha rua, as crianças afinal reclamam de não ver novela mas no fundo no fundo, ficamos contentes porque podemos fazer mil coisas fora do ritmo normal das nossas vidas». E as mil coisas passam pela partilha, pelo olhar o outro nos olhos, pela conversa tardia, o convívio com os cheiros e os sons.

E porque o sentido da escrita e do escrever vem sempre bater-me à porta, e ainda porque me perseguia uma curiosidade sobre o estilo de Mário de Carvalho, aventurei-me este ano com Quem disser o contrário é porque tem razão, desse que é um dos autores portugueses mais premiados. Com este livro, Mário de Carvalho sinaliza um lembrete vivo sobre a quantidade (pela testadíssima qualidade) de obras e lendas fundadoras que devemos cumprir antes de nos iniciarmos numa odisseia literária com a própria assinatura. Recorre a Tchékhov para o frisar: «A arrogância é uma qualidade que fica bem aos perus». Não só porque os melhores escritores se arredam do autoelogio, mas também para lembrar que há um universo literário pelo qual já devemos ter passado e sem o qual não estaremos em condições de escrever. E isso implica sair da cápsula do nosso tempo e do nosso espaço. Há uma lista de obras notáveis, desde a Alexandria helenística, passando por todas as obras que ganharam o consenso e o reconhecimento dos clássicos: «Penso no Gilgamesh, na Ilíada e na Odisseia, n’Os Lusíadas, em todo o Shakespeare». E continua reforçando o conselho: «O leitor que vai iniciar-se na escrita literária precisa de um património, precisa de recursos, precisa de provisões, como alguém que vai enfrentar uma rota esplendorosa de paisagens, mas de longo curso de piso acidentado».

Logo no início do ano, voltei ao controverso escritor brasileiro Marcelo Mirisola, editado em Portugal pela Cotovia e já aqui entrevistado. No seu mais recente título, Como se me fumasse, celebra um assumido, corajoso e arrojado relato autobiográfico, que assina com o próprio nome, sem papas na língua, sem medos nem atalhos na hora de levar o dedo à ferida: «(…) a disposição de estar errado no lugar certo (e vice-versa) é o resumo da minha vida». É o remate, para começo de conversa. A conversa que coloca no papel a história de uma vida. A vida do ex-aluno da faculdade de direito que trocou a advocacia pela literatura (apesar dos vários disfarces adiados). «Nunca seria engenheiro, garanhão, peão de boiadeiro ou advogado, sempre escritor.» Com a morte da mãe, a quem dedica este livro, Mirisola ensaia a saída de um ciclo para entrar num outro, espantosamente, amparado numa esperança e numa fé… chamadas «ruína». A sua maior ironia. E a sua maior verdade.

Em 2018, li ainda outros tantos, cuja síntese trarei neste próximo ano: O Prazer da Leitura, de Marcel Proust, Cartas a um Jovem Poeta, de Rainer Maria Rilke, Os Mestres da Humanidade, de Karl Jaspers e Siddhartha, de Hermann Hesse. Em mãos, neste momento, tenho promete-me que lês, de Luís Osório, que nos surpreende pela autenticidade voraz e sobre o qual falarei também em 2019.

Que 2019 seja então um ano de maior amor ao livro e de mais e mais visitas à livraria, essa espécie, afinal, de «paraíso», nas palavras do incontornável Jorge Luis Borges.

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