«Como toda a gente, só disponho de três meios para avaliar a existência humana: o estudo de nós próprios, o mais difícil e o mais perigoso, mas também o mais fecundo dos métodos; a observação dos homens, que na maior parte dos casos fazem tudo para nos esconder os seus segredos ou para nos convencer de que os têm; os livros, com os erros particulares de perspetiva que nascem entre as suas linhas». O trecho é de Marguerite Yourcenar. E é com ele, e com uma dedicatória aos seus leitores, «razão de ser da viagem», que Luís Osório abre o seu primeiro romance, publicado em 2017.

O jornalista (ou ex-), escritor, consultor, autor de projetos criativos deixa-nos, em A Queda de Um Homem, uma metáfora atroz sobre a cruel contemporaneidade; o embevecimento (evoluído para deslumbramento cego e desmedido) causado pelo poder (poder pelo poder); a linha ténue entre o bem e o mal; a ausência de valores. Um tratado, em síntese, sobre um valer tudo sem precedentes, subtil, por vezes. Uma espécie de generosidade na pulhice.

Dois primos (sem nomes), uma estação de comboios onde nenhum dos protagonistas tem memória de alguma vez ter estado, uma viagem de comboio com partida, sem regresso nem rumo. Uma mulher vítima de um acidente que a votou à paralisia numa cama e que, a partir desse estado vegetativo, procura intervir sobre a fronteira entre a realidade e o sonho. Entre os primos (sem nomes), uma permanente relação de discórdia e a materialização de um braço de ferro entre a vida e a morte, o tempo e o espaço, o passado e a falta de futuro. Uma viagem que se faz a contraciclo, sem fim à vista. Repito: sem nomes (os primos). Ele: carregado de poder, dinheiro, ambição e… mistério. Como Ícaro, sobe, sobe, sobe. E cai. Ela: carregada de sonhos, ficção e imaginação no único espaço de liberdade que tem (a cabeça). Juntos, protagonizam uma viagem de comboio com começo, sem fim. Desassossegada. Como o autor a determinado momento refere, parece tratar-se de «(…) gente viciada em palavras definitivas». Gente que surge, aqui, como um veículo de reflexão sobre algumas das questões mais universais da humanidade.

Um comboio subjacente a toda a complexidade narrativa remete-nos para a própria evolução vertiginosa do tempo e do espaço. A trama no interior do comboio direciona-nos para uma saga de relações de poder, hierarquia, desequilíbrio, disputa, descrença no ser humano. Ou não. Aparece, num fio condutor simultâneo, o sonho. Numa vitória nítida sobre a decadência. E sobre a sombra. Ou não. Luís Osório, magistralmente, confere-nos a decisão.

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