Numa madrugada amena do final de verão, perfilamo-nos junto ao embarque rumo a Angra do Heroísmo, na Ilha Terceira. À espera, um voo carregado de pessoas ávidas do regresso às viagens, depois dos isolamentos pandémicos que a todos obrigaram a parar. Ao meu lado, junto à janela, na asa, segue uma jovem fotógrafa com olhos arregimentados na objetiva de uma câmara, captando a imagem aérea de Lisboa e o nascer do sol que fixou o novo dia. Na conversa que tivemos, descubro que não viajava de avião há oito anos. O significado desta viagem é para ela ainda maior. Na aterragem, dá de novo conta da objetiva e é através do seu olhar guiado que avisto a proximidade da prestigiada Aerogare das Lajes.

Nos tempos idos em que a mesma Ilha Terceira foi descoberta, no século XV, as viagens faziam-se de barco e de barco chegou em 1499 Vasco da Gama a esta ilha açoriana, desviado por ventos desfavoráveis na sua vinda da Índia. Uma doença inesperada do seu irmão, Paulo da Gama, também presente na embarcação, obrigou-o a uma paragem maior e, na zona cimeira do porto de Angra do Heroísmo, é com Vasco da Gama, na sua figura de pedra elegante e proeminente, que séculos depois tiramos a primeira fotografia obrigatória.

Angra do Heroísmo é extraordinária. Bonita. Pintada de cores fortes. Com personalidade vincada. Luz marcante. E o posicionamento estratégico num ponto específico do Atlântico, algures a meio do mundo. Cumprida a Rua Direita que nos leva ao porto, um ícone no mapa urbano de Angra do Heroísmo, avistamos imponente a Igreja da Misericórdia. Pelas ruas que seguimos a partir dali, as cores quentes dos edifícios, das flores abundantes e o cheiro aprazível no ar vão-nos conduzindo pelos diferentes percursos a escolher. Na Praça Velha, ponto de encontro com o edifício da câmara altivo, fazemos uma pausa e acertamos o passo seguinte. Na Sé Catedral, encontramos a estátua emblemática de João Paulo II, o único Papa com visita feita aos Açores (11 de maio de 1991). No interior da Sé, cruzamo-nos com turistas de várias nacionalidades deslumbrados com o edifício. À volta, noutras partes da cidade, várias outras igrejas reafirmam o sentido religioso da ilha tão devota do Espírito Santo. Cada igreja com uma cor, num cenário visual muito característico e atrativo. O mercado Duque de Bragança, o Cinema, o edifício da Vice-Presidência do Governo e, ao lado, o Jardim Duque da Terceira são também figuras de proa no passeio a pé.

De carro, a Ilha Terceira torna-se maior do que Angra do Heroísmo, é certo, e tão próxima, dada a distância que nos coloca de novo face ao mar. À mão, à saída da principal cidade, alcançamos a Terra Chã e por ruas e ruelas vamos avistando moradias imponentes, muitas delas com a bandeira dos países que tradicionalmente acolheram muitos dos açorianos emigrados. É a obra de uma vida que orgulha nos olhos dos seus proprietários a capacidade de partir, para regressar melhor e permitir às novas gerações um futuro. Nos Biscoitos, zona balnear com piscinas naturais erguidas entre dunas vulcânicas, ao contrário, estou minutos largos à conversa com uma senhora que me contou nunca ter saído da Ilha Terceira. Com o mesmo orgulho dos que saíram para voltar com uma casa maior. Outros lugares há em que passamos de carro e nos quais intuímos a pertença a um lugar que, ainda que pequeno, é aglutinador de um mundo próprio para morar. Posto Santo, Altares, Raminho, Serreta, 12 Ribeiras, São Sebastião ou Fonte Bastardo, que reconhecemos de nome pela sua forte equipa de Voleibol. Na Vila do Porto Judeu, paramos o carro e olhamos com tempo para o mar. Dali avistamos dois pedaços de terra rasgados ao meio num desenho que parece feito no papel.

Também de carro, ponto obrigatório é a segunda cidade da ilha, Praia da Vitória, terra natal de um dos nossos escritores mais incontornáveis do século XX, Vitorino Nemésio, que nos deixou como legado uma vastíssima obra de poesia e o seu único romance Mau Tempo no Canal. Na Praia da Vitória, visitamos, precisamente, a Casa-Museu Vitorino Nemésio, que nos leva ao imaginário coletivo português, dado o berço de um escritor com este peso ser peça fundamental do património cultural comum. Para além do berço em que dormiu e do carro de bebé que na sua versatilidade também era cadeira para comer, são várias as referências da vida doméstica e familiar que vemos na visita a este espaço, à entrada sinalizado com a introdução de um jovem guia e o televisor sintonizado nas imagens antigas de uma RTP em que o escritor, no programa “Se Bem Me Lembro”, falava sobre tudo e a falar sobre tudo conquistou o país.

Das inúmeras voltas a dar ao longo da ilha, guardo três particularmente fascinantes: a Serra do Cume, de onde avistamos o recorte de montanhas enigmáticas e ouvimos como em mais lugar nenhum a intensidade do vento a ser vento; o Algar do Carvão, antigo vulcão adormecido nas entranhas do qual entramos para sentir a indescritível impressão de estar dentro da terra; e a Serra de Santa Bárbara, localizada a 1021 metros acima do nível do mar e a partir da qual vemos, havendo céu limpo, outras ilhas do grupo central do Arquipélago dos Açores.

O mais impressionante na Ilha Terceira, para além de um contributo inestimável para compreender a insularidade ou, se quisermos, nas palavras de Vitorino Nemésio, a «açorianidade», é a sua capacidade para se reerguer após o sismo de 1980. 7.2 graus na escala de Ritcher originaram mais de 70 vítimas mortais, 400 feridos e mais de 20 mil desalojados. Números que vemos retratados no Museu de Angra do Heroísmo, um dos mais completos e bem documentados que vi. Na Ilha Terceira, como ela é hoje, sentimos essa marca da superação, da bonança depois da tempestade, da esperança.

De volta a Angra do Heroísmo, e da varanda do quarto onde leio e descanso, avisto o Monte Brasil, Reserva Florestal de Recreio no seio do qual permanece a Fortaleza de São João Baptista, que alojou na qualidade de prisão política um tio/avô que tive e que não conheci. Estar ali no século XXI e poder observar aquele lugar a partir da memória familiar tornou a minha janela sobre a Ilha Terceira incomensuravelmente maior.

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