A humanidade inteira num pedaço. É o que podemos ver na exposição neste momento patente no Lugar de Cultura da Livraria Barata, em Lisboa, da autoria do artista António da Cruz Rodrigues e com intervenções de Manuela Sola Castro, Luís Alegre e Eduardo Côrte-Real: “Afurada, um pedaço de humanidade”. Num tempo de links sucessivos e interações digitais, na Afurada, vila piscatória com vista para o Porto, voltamos ao tempo em que havia tempo. Para estar e para passar. Ir e vir. Estar, ainda que de passagem. Fui ver com os meus olhos e falei com o próprio António da Cruz Rodrigues.
«As lavadeiras são mulheres extraordinárias. Encantei-me por elas. E, para além delas, descobri outras personagens locais que me permitiram ir de uma narrativa local para uma narrativa mestra, universal», disse-me António da Cruz Rodrigues. «Foram a diferença, o inusitado, a felicidade que me puxaram ali. Há qualquer coisa neste estendal que atrai este pedaço de humanidade», aprofundou. E por isso ficou para contar com os olhos, explorando o movimento não sincronizado das pessoas, dos seus objetos e transportes, à luz da obra de bailado contemporâneo, que o inspira, “Quinze bailarinos e tempo incerto”, de Rui Lopes Graça, com os seus elementos movimentando-se do tempo certo para o incerto. Como nesta exposição.
«Fazer uma fotografia significa testemunhar a presença num “sítio”». O que António da Cruz Rodrigues faz, neste trabalho artístico multidisciplinar é, a partir desse “sítio”, permitir uma reflexão global e agregadora do ser humano. Do saber estar. Do saber passar. Para lá e para cá. Num lugar assumidamente de passagem, na Afurada, onde as lavadeiras, muitas delas mulheres de pescadores estendem a roupa em estendais públicos, intocáveis e inacessíveis a mãos alheias, ainda que à mão de semear.
Ali, passam dezenas de pessoas por dia, à margem da rotina daquelas mulheres. E, durante quatro anos, António da Cruz Rodrigues sentou-se, sempre num mesmo ponto de observação, para disparar a máquina fotográfica em punho. Em cada retângulo da objetiva disparada, um enquadramento específico, «uma visão das “coisas”», as mulheres estendendo a roupa e outras pessoas em trânsito, indiferentes ao resto. E o artista fixando o olhar naquele tempo, naquele lugar, para contar através da fotografia combinada com outras artes.
Na exposição em que somos levados para a Afurada, lugar que ganha neste contexto uma dimensão absolutamente universal, vemos as diferentes fotografias de António da Cruz Rodrigues complementadas com ilustrações a traço preto da “Singularidade” do também artista Luís Alegre. Vemos as suas fotografias enquadradas na palavra poética da escritora Manuela Sola Castro, numa abordagem de mistura entre a imagem e a palavra, a palavra e a imagem: “Gramática, métrica e vocabulário”. Vemos, ainda, a imagem a ganhar novos movimentos e extensões com a “Indagação” do desenhador Eduardo Côrte-Real.
Nesta exposição, somos levados para dentro do estendal, do seu ritual e dos ritos de passagem associados ao lugar onde está exposto. E na própria exposição há um estendal simulando a realidade retratada. Somos espectadores, ali, e sentimo-nos dentro do cenário captado pela câmara. Estamos dentro e fora. Fora e dentro. Como na Afurada. Como na humanidade. Com as suas valências tão ricas, com a diversidade da diferença antropológica, do «sabão macaco às malas de viagem de quem chega para fazer Erasmus», como relata o autor.
A partir de uma abordagem artística multidisciplinar, esta exposição faz uma apologia da singularidade de cada olhar: «Podemos ser todos donos, em comunidade, do mesmo espaço material, mas donos exclusivos de um modo singular de o ver», diz-nos António da Cruz Rodrigues. E o que podemos ver de modo singular, aqui, é a humanidade. Não é pouco.
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