E ntramos na linguagem poética de André Osório, desde logo fascinados pelo cruzamento da sua juventude com a sua lucidez e maturidade. Perguntamo-nos: o poeta tem só 22 anos? Sim, ouvimos bem. Nasceu em Lisboa, em 1998. É licenciado em Estudos Portugueses, pela Universidade Nova de Lisboa, e encontra-se, de momento, a tirar o mestrado de Teoria da Literatura na Universidade de Lisboa. Ao lado de Maria Brás Ferreira e Tomás Gorjão, todos alunos de humanidades, cofundou em outubro de 2019 a revista literária “Lote”, com uma abordagem inovadora. Tem poemas divulgados em várias outras publicações da especialidade e, em agosto de 2020, lançou-se como autor com o primeiro livro publicado: Observação da Gravidade, da Guerra e Paz Editores. Lançado na Feira do Livro de Lisboa, carregada de simbolismos impostos por este ano atípico, o primeiro título de André Osório foi apresentado pelo poeta Fernando Pinto do Amaral e contou com poemas lidos por Tiago Rodrigues, Prémio Pessoa 2019. O auditório ao ar livre onde o livro foi lançado encheu-se e entre os presentes estava eu. Prometi ao pai de André Osório, o escritor e jornalista Luís Osório, que faria tudo para lá ir. Fui, de facto. E vim com um olhar novo sobre a poesia, que ficou em banho-maria até desencadear esta (feliz) entrevista. Com um dos mais promissores poetas do país.
Começo pela sua idade: 22 anos (e 21 quando se estreou como autor do primeiro livro, recentemente publicado). Há uma maturidade sentida, visível, na sua poesia… Estamos perante um poeta puro ou um visionário com a capacidade de antecipar (em muito) o tempo e o que com ele se aprende?
Não sei se é minha competência avaliar isso. Quanto ao ser poeta puro e visionário posso dizer que não entendo a poesia como tal, nem mesmo Rimbaud ou Yeats o entendiam nesse sentido. Porém, penso que no meu processo de escrita de um poema ou de um livro procuro sempre uma temporalidade própria, que cada poema possa ser em si ou afluente do todo que o situa. Nesse sentido, de facto há um caminho traçado, uma visão do que entendo que é a minha poesia. Não necessariamente a partir de um movimento exterior-interior-exterior, ou seja, de retirar dos sentidos a matéria que a sensibilidade volta a materializar em poema, mas de uma confusão de tudo isto, de todos estes processos. Raros foram os poemas deste livro que foram escritos de uma assentada, mais raros os que não foram mudados em várias alturas diferentes até à versão final que acaba por integrar a obra. Quero com isto dizer que não há nada de puro ou de visionário nos meus poemas, não além da procura de construir uma visão própria do livro. Todavia, acaba por ser engraçado haver em várias instâncias dados biográficos à mistura, pertencentes necessariamente ao passado e a uma esfera pessoal. Antecipar o passado ainda será inventado, mas não por mim. Agora, não penso que seja um livro de todo biográfico. Mesmo nos poemas que mais o aparentam ser, e esses foram talvez os mais “falsificados”, os elementos biográficos estão presentes na perspectiva da sua anulação enquanto tal. Para isso é preciso um trabalho de depuração. Não é possível antecipar o que é presente além do reconhecimento que nos é necessário dele.
Antecipar o passado ainda será inventado, mas não por mim.
Observando-se de fora, como olha para o poeta André Osório que, com apenas 21 anos, publica o seu primeiro livro – Observação da Gravidade – numa grande editora, com lançamento na Feira do Livro de Lisboa e leituras dedicadas do respeitado e já premiado Tiago Rodrigues? Como se (di)gere tudo isto?
De dentro e de fora, uma grande satisfação. Uma satisfação por ter tudo corrido bem e por ouvir o meu livro através das palavras informadas de Fernando Pinto do Amaral e das excelentes leituras de Tiago Rodrigues, que muito me comoveram. Foi um privilégio poder ter esta oportunidade (ainda para mais com um público tão bem composto), tal como foi e é poder estar publicado na Guerra e Paz. A digestão já estava a ser feita há algum tempo antes sequer de ter, por assim dizer, comido. Qualquer coisa, não há nada que um Pankreoflat não resolva.
O seu primeiríssimo verso, neste livro, diz: «Este é um poema para ser esquecido». Pergunto-lhe (por contraponto) se a publicação de um livro não é desde logo um exercício para sermos lembrados? Qual é a sua razão mais íntima para publicar?
É para ser esquecido justamente em nome da sua lembrança, de uma forma muito literal no contexto do livro. Não da lembrança da publicação do livro ou do meu nome nele, mas da dos próprios poemas circunscritos no livro, depois da leitura, lembrados dentro do seu esquecimento. A razão mais íntima da escrita para mim é, portanto, ser lido, partilhar o que só no silêncio se produz. Somos lembrados, se o formos, por acidente, por um excesso. Porém, colocar na esfera pública um livro é um gesto derivado da escolha de o ver publicado, de esperar que seja lido e que isso, de alguma forma, sirva de contentamento, nem que seja pelo próprio acto da partilha. Se vender, e mais, se formos reconhecidos, melhor ainda. É razão para se ficar contente. Mas a própria escrita não busca isso nem deve buscar. Deve-se ser verdadeiro com aquilo que se quer dizer e com o modo como se quer dizer. Da melhor forma possível em dado momento.
Gosto da ideia da Mina Loy sobre o acto de ver, das janelas de casa como olhos de vidro que vêem para dentro e para fora. Estar dentro ou fora são duas versões da mesma coisa, está-se sempre por dentro em si, ainda que a procura não deixe de ser necessária.
Que relevância ganhou a “Observação da Gravidade” para merecer o lugar do título? Houve certamente uma consolidação das três partes que constituem o livro: “Gravuras”, “Observação da Gravidade” e “Museologia”. Mas como chegou a essa construção?
“Observação da Gravidade”, por breves momentos, foi o título substituto de um poema que já não existe, que foi rasurado. Pensei durante algum tempo em refazer o poema, mas ficou-me só o título, mesmo quando escrevia outros poemas. Acho que o livro adquiriu forma a partir do momento em que me comecei a aperceber que este título definia aquilo que procurava quando escrevia, algo que pudesse ser, em simultâneo, uma arte poética geral e uma ideia de livro. A própria estrutura procura essa ideia. Dito isto, este é um livro que de certo modo gravita em volta de um título, o seu título. Faz sentido, portanto, que o livro esteja dividido em 3 partes e que a do meio possua o mesmo nome do livro. As próprias secções “Gravuras” e “Museologia” acabam por ter semelhanças no que diz respeito ao tema dos seus (sub)títulos; se, por um lado, uma gravura é uma imagem gravada sobre uma matriz (sendo a secção também sobre uma ideia de infância), por outro a museologia é o estudo dos museus, que, entre outras coisas, (re)organiza a disposição do que se mostra e onde se mostra. Procurei que existisse no livro uma espécie de simetria.
Ao longo de todo o livro, o poeta André Osório parece estar, permanentemente, dentro de casa. «Atravessar o tapete de casa/ é um ato de recordação.» Noutro poema, fala-nos no «olho de uma casa/ que olha para dentro» e, num outro, adverte: «Importa caber nos vestidos das casas/ a eles sempre voltamos.» É a casa um lugar identitário, por excelência? Como olha para o sentido da casa que se habita?
Sim, de certo modo. A casa habita-se na procura da casa, porventura já por dentro dela, mas sempre num limiar. Gosto da ideia da Mina Loy sobre o acto de ver, das janelas de casa como olhos de vidro que vêem para dentro e para fora. Estar dentro ou fora são duas versões da mesma coisa, está-se sempre por dentro em si, ainda que a procura não deixe de ser necessária. A casa é simultaneamente um lugar de liberdade e de opressão, de segurança e de busca. Além disso a casa tem uma dimensão espacial, de vazio a ser habitado pela vida de quem habita ̶ habitada de mobília, de quadros, cores, pratos velhos, cortinas, armários, estantes, ou, por e simplesmente, pelo acto de olhar. A procura da casa é, pois, a procura dela mesma por mão de um outro que pensa ser seu dono, quando, na verdade, a relação é fluída; uma casa é o que carregamos connosco. Penso haver aí uma construção identitária, uma casa por dentro de uma casa, por assim dizer. A memória terá um papel claro na definição dessa geografia, somos o culminar daquilo que vivemos e experienciámos, ao mesmo tempo que nos movemos no presente. A casa, nesse sentido, é uma construção biográfica. Creio haver uma ideia de interioridade, de intimidade se quisermos, que é importante no livro. É com a procura de um centro que cada poema se restitui.
A infância, à qual também se refere, guarda os alicerces da vida inteira. Que principais memórias guarda da sua infância? Acontecia-lhe «brincar sem saber/ o que fazer/ às mãos», para o citar?
Guarda, apesar de ser uma infância contaminada. Escrever sobre a infância implica uma distância que lhe é contrária. Ela existe em nós apenas como conta-movimento de si mesma. Em boa verdade, não tenho a certeza se acontecia. Como todos os miúdos gostava de jogar futebol nos recreios, de correr, de brincar; tinha as mãos ocupadas com matéria a que o tempo lhes tirou. Lembro-me também dos largos Verões, do mês inteiro que passava no Algarve, em Tavira, fora do dia-a-dia rotineiro de Lisboa. Era quase sempre um momento de renovação ou de intervalo. O poema “A Apanha de Conquilha”, que recupera essa paisagem, talvez seja o que tem mais elementos biográficos. Ia a uma praia deserta que se acedia de barco pela Ria Formosa. Lá, procurava canas para construir cabanas improvisadas ou fingir que caçava peixes a partir do caudal de rochas que abria o mar, apanhava conquilhas com o meu avô para servirem de aperitivo ao almoço. Era uma praia deserta, povoável. Em retrospectiva, percebo que eram esses gestos que me povoavam. Recordo-me dos animais, de uma cadela e de um gato. Do cipreste no centro do pátio.
Fazendo um atalho pela revista literária que fundou em 2019, “Lote”, que importância atribui a esse “movimento” para a construção da sua própria linguagem poética?
A “Lote” teve uma grande importância no que poderei chamar a minha linguagem poética. Foi no processo de construção do primeiro número (com o segundo a sair em breve) da revista, um que se estendeu por mais de um ano desde a ideia até ao objecto, que aprendi a olhar para a minha poesia de uma forma mais crítica, a editá-la com vista à publicação. O processo da publicação da “Lote” foi também longo devido às constantes mudanças nos textos, que seguiam a maturação que o próprio processo exigia. Além disso, creio que trabalhar em conjunto num projecto como a “Lote” ajudou-me a colocar em perspectiva aquilo que fazia, a reconsiderar certas imagens. Acabei, nesse período, por cimentar um hábito que antes era mais disperso. Penso que foi um passo importante rumo à construção de uma linguagem poética, e igualmente importante para a existência deste primeiro livro.
Quando começou a ler poesia? E que poetas guarda na mesa-de-cabeceira?
Comecei a ler poesia só aos 14 anos, durante o secundário. Mas o que verdadeiramente me “iniciou” na poesia foi descobrir Herberto Helder e António Ramos Rosa, talvez aos 15 anos. Actualmente guardo na mesa-de-cabeceira outros poetas além destes. Diria Manuel António Pina, Eugénio de Andrade, Carlos Drummond de Andrade, T. S. Eliot, Philip Larkin, Seamus Heaney.
A poesia, como um espaço de liberdade, deve poder ter um lugar na vida das pessoas. Tal como a literatura, o cinema, a pintura, ou as Ciências Humanas em geral o devem poder ter. Mas, se me perguntar se a poesia pode salvar um mundo do colapso, eu direi que não.
Comecei e termino com a idade: como se olha para a frente a partir dos 22 anos de idade e num século XXI periclitante, exigente, exasperante? Poderá a poesia assumir um papel determinante de garantia e consolidação do futuro?
Estou aberto a sugestões. Mas penso que é importante uma pessoa estar focada no que quer e levar um dia de cada vez. Como toda esta geração, cresci durante uma crise que se parecia estar a resolver até há uns meses quando a pandemia começou. As coisas provavelmente vão ficar mais difíceis outra vez e todos devem estar unidos para que não se entre também numa crise política, com discursos cada vez mais polarizados, nomeadamente à extrema-direita. É um tempo muito perigoso a vários níveis. E o medo propicia a que mais pessoas procurem quem o capitalize, quem o espelhe, e o instrumentalize por meio de uma posição mascarada de “anti-sistema” que esconde o maior dos autoritarismos. A poesia não basta, a poesia nunca basta, apesar de ser importante para olhar o mundo e a própria subjectividade com outros olhos. A poesia, a literatura, a filosofia, as humanidades, são o que escapa à forma que cada vez mais nos esmaga; é importante a educação, uma educação humanística e não só técnica; é importante a empatia, compreender pontos de vista e formas de expressão diferentes da nossa; é importante povoar e questionar as estruturas que nos “contêm” e fazem acreditar que somos livres; é importante para existir espírito crítico. É importante para tudo isso, para quase tudo, e, ao mesmo tempo, para nada. A educação demora, é um investimento, não é imediata. O modo de pensar demora a mudar, certas crenças e tradições (essa mitologia autoritária), certos hábitos ou formas de ver o mundo, demoram a ser processados. Quando falo no ensino não me refiro a um com papel modelador, mas um que ensine de facto a pensar e pensar emocionalmente, empaticamente. Tal não descura, de todo, a parte técnica e a importância de outras áreas na nossa vida em sociedade. Isto é importante em qualquer área, deve existir uma simbiose entre o que é da ordem da técnica e o que é da ordem do humano na sua relação mais íntima consigo. Não acredito, porém, que a poesia ou as humanidades sejam garante de alguma coisa quando há problemas profundos de desigualdade e de crise generalizada; mas penso ser importante investir nelas tanto quanto mais cedo, dar a possibilidade (que é uma forma de liberdade) de pensar nas estruturas em que estamos integrados ̶ sociais, económicas, morais, políticas ̶ , em quem elegemos, no que somos para nós e no que somos para o outro. A poesia, como um espaço de liberdade, deve poder ter um lugar na vida das pessoas. Tal como a literatura, o cinema, a pintura, ou as Ciências Humanas em geral o devem poder ter. Mas, se me perguntar se a poesia pode salvar um mundo do colapso, eu direi que não. A empatia talvez.
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