Andreia Tibério dos Santos
Em 1917, ano que ficou votado a um dos acontecimentos internacionais mais incontornáveis, a revolução russa de 1917, que decorria em plena Primeira Grande Guerra, nascia em Portugal o Mestre Vítor Luiz dos Santos, com mãos de artista, hábeis para o detalhe e o manuseamento do livro. Em 1950, com a Segunda Grande Guerra já ultrapassada, nascia numa segunda geração Fernando Pinheiro dos Santos, no mesmo Portugal e com a mesma sorte, provavelmente, entranhada no sangue. Em 1977, num Portugal já em início de democracia, nascia na terceira geração da mesma família Andreia Tibério dos Santos, que seguiu o ofício. Pai e filha na calha das passadas do avô, considerado um dos melhores encadernadores e douradores portugueses, cujas pegadas levaram à criação de um lugar mágico: a Arte no Livro. Andreia Tibério dos Santos, a cara da terceira geração, fala na primeira pessoa (em nome de três) e leva-nos numa viagem ao outro lado do espelho.
A Arte no Livro é um projeto geracional, que chega às suas mãos por via de herança. O seu avô, Vítor Luiz dos Santos, que a fundou, era considerado um dos melhores encadernadores e douradores portugueses… Como vê esse legado, essa responsabilidade?
O ofício de encadernador/a e dourador/a decorre (no nosso caso) de um processo de aprendizagem geracional. O meu avô começou a trabalhar muito cedo, ainda criança, não logo como encadernador e dourador, mas ligado ao meio dos livros. Foi crescendo e por mérito próprio, muito trabalho e empenho, criou nome e reputação entre os seus pares. Eu e o meu pai tivemos o privilégio de ser aprendizes na sua oficina ao longo de vários anos e fomos redescobrindo algo que se verificou inato, que é a paixão por este ofício. Diria que está no nosso sangue e como tal é uma aptidão e grado que se desenvolve espontaneamente. Claro que é uma enorme responsabilidade e quando o meu avô faleceu ponderámos e decidimos assumir um compromisso e continuar o seu legado. Foi assim que nasceu a Arte no Livro. Para nós a melhor forma de homenagear o trabalho de uma vida era continuar o mesmo e perpetuar a arte do meu avô.
Como explica a capacidade de a Arte no Livro atravessar o século XX, instalar-se no século XXI e resistir à expansão do digital? É um projeto resiliente, mas a contraciclo, certo?
Se formos analisar de uma forma estanque parece algo que poderá acontecer a contraciclo, mas na realidade o livro em formato digital não conseguiu substituir o livro físico. A verdade é que a encadernação e o restauro de livros artesanal, conforme a fazemos, enquadram-se num processo de preservação de memórias e saberes. E é destas tradições que se faz a História, que sustêm a nossa vida e nos engrandecem com conhecimentos para a posteridade. Os nossos clientes são todas aquelas pessoas que possuem efetiva estima pelo livro, enquanto objeto literário e objeto de arte. Deste modo não vai colidir com a ligação que algumas pessoas têm com o meio digital. São públicos diferentes. O nosso trabalho é feito com completa dedicação, carinho e encanto pela criação. Estas circunstâncias são visíveis nos trabalhos finais, que são físicos e podem ser tocados, cheirados e sentidos. Estas sensações não são suscetíveis de ocorrer no digital. Um livro encadernado é único.
Ser, hoje, “embaixador” do livro no seu formato tradicional, em papel, parece mesmo uma heterodoxia. Mas a verdade é que o padrão de transmissão de conhecimento através do livro é testado desde os primórdios, com os primeiros escritos à mão…
Gosto de pensar que somos resistentes e algo puristas na forma como encaramos o livro, paradoxalmente, criamos abordagens que incorporam uma contemporaneidade visual e estética. Conseguir conciliar os saberes e técnicas artesanais com a vertente harmoniosa que a beleza de uma encadernação de design aborda é gratificante. Acreditamos no que fazemos e defendemos que o formato tradicional é imortal, mas gostamos de salpicar com novos métodos e experimentar materiais e formas de trabalhar distintas. Os primeiros livros, quando surgiram, eram dirigidos a uma elite de pessoas, sobretudo dentro do núcleo fechado da Igreja. A encadernação servia, em grande parte, para proteger as obras. Os tempos evoluíram até que todos pudessem ter acesso à cultura e à literacia. Um livro físico revela mais do que o seu conteúdo. Um livro físico dá mostras de História, de pessoas, de formas de estar, de tendências, de cultura. É um objeto antropológico e base de estudo, em toda a sua essência, pois revela tantas narrativas para além das que lá estão impressas…
Quem é que procura a Arte no Livro para as suas duas vertentes de atuação: conservação de livros antigos e encadernação de novos livros?
Os nossos clientes são, em grande parte, particulares que têm bibliotecas privadas e que querem preservar os seus livros. O nosso papel aqui passa pela encadernação e restauro, pois algumas obras são datadas de séculos passados e nós visamos sempre preservar e manter as encadernações originais. Depois temos clientes que veem o livro também como objeto de arte e nestas ocasiões o nosso trabalho enquadra-se num modelo de encadernação de design, que é um estímulo criativo e experimental muito gratificante e libertador. Sempre que trabalhamos numa encadernação de design pretendemos criar uma extensão do conteúdo do livro para a capa, nunca descurando todo o processo técnico fundamental para que o trabalho cumpra os requisitos de excelência com que nos regemos desde sempre.
A conservação de livros antigos continua, como no início, a adotar uma técnica artesanal. Fale-nos um pouco dessa técnica e de como evoluiu o seu convívio com a tecnologia que entretanto foi chegando?
A conservação e o restauro são formas diferentes. Nós fazemos o restauro dos livros, das capas, das folhas (por exemplo, quando estão rasgadas), etc., com recurso a materiais (peles, papéis, colas que fazemos na oficina…) que não adulteram o original. O objetivo de um restauro é garantir que o livro seja recuperado sem defraudar o seu estado original. Por exemplo, quando um livro muito antigo nos chega com a capa com falhas (seja em pele ou em pergaminho), o nosso trabalho vai implicar o preenchimento das faltas com um cuidado tal que no final se note o menos possível. A conservação, por seu lado, consiste em preservar as obras sem intervir nas mesmas, utilizando métodos científicos de datação e de guarda (temperaturas, salas…).
No fundo, há uma preparação prévia que implica uma dedicação aos elementos que vão integrar o caminho estético da encadernação. Esta lida fazemo-la com calma e com reflexão e com anotações, também. Se defendemos que cada livro que criamos é único devemos trabalhar nesse sentido.
E no que respeita à encadernação artística: o que distingue o vosso ofício?
A encadernação artística, mais livre e sem condicionantes, permite-nos uma entrega muito pessoal. Quando temos um trabalho desta natureza procuramos conhecer a pessoa que o vai receber, conhecer o conteúdo do livro e o trajeto do autor/a. No fundo, há uma preparação prévia que implica uma dedicação aos elementos que vão integrar o caminho estético da encadernação. Esta lida fazemo-la com calma e com reflexão e com anotações, também. Se defendemos que cada livro que criamos é único devemos trabalhar nesse sentido. O que nos distingue é esta entrega e o aliarmos a técnica que sustém um bom trabalho de encadernação com a beleza material que deve incorporar os intervenientes (capa existente, autor/a, título, conteúdo, dono/a e, no meu caso, a encadernadora).
Que atividades é que existem na Arte no Livro, à margem da sua atividade principal? Que diálogo promovem em torno do livro?
Atualmente, estamos dirigidos quase em exclusivo ao ofício, embora tenhamos um pequeno espaço dedicado a uma livraria. Para além dos projetos de encadernação e restauro temos ainda a Oficina Aberta que é um modelo que visa ensinar as técnicas de encadernação. É flexível no horário e individual, assim cada aluno consegue gerir o seu tempo e o ritmo a que aprende ou desenvolve alguma técnica existente. Para além destas abordagens já proporcionamos encontros para conversas com autores e recebemos, por exemplo, o Afonso Cruz, o José Luís Peixoto, o Ricardo Belo de Morais. Também apresentámos projetos literários como a Flanzine, a Gerador e a BOCA. Organizámos um pequeno concerto com os The Loafing Heroes (onde participa o João Tordo). Confesso que esta vertente me entusiasma bastante também, mas chegou um momento em que tivemos de nos focar e aí o coração falou mais alto e a oficina ganhou terreno. Tenho muito orgulho em ser a terceira geração de encadernadores e quero pensar que muitas mais existirão.
A Arte no Livro é a materialização de que o livro e o objeto artístico se confundem. Como explica essa relação?
É uma relação natural, a meu ver. A leitura faz parte do meu dia, entra na minha rotina de forma natural e agradável, de tal modo que sinto uma falta quando não leio. Um conteúdo literário é uma forma de arte; as palavras, de per si, são formas de arte; a ilustração é uma forma de arte; até a pontuação e o tom com que se escreve são formas de arte. A encadernação é uma extensão artística do que já é um livro. Podemos dizer que é o início e o fim primoroso do livro. Apuramos o primeiro e último contacto com o objeto.
É uma leitora acérrima. Que livro encadernaria na Arte no Livro (ou: qual é o livro da sua vida)?
Esta última pergunta é a mais difícil. Tenho os dois volumes de “A Mulher no Mundo” da Maria Lamas. Comprei-os num alfarrabista há anos e há anos que penso em trabalha-los, mas entram afazeres de clientes e ainda não consegui começar, mas está para breve. Também tenho a edição fac-similada da Orpheu 1 e 2 que vou encadernar, até porque temos as gravuras de ambas e ainda a gravura da 3 (que foi escrita mas nunca chegou a ser editada). Sobre o livro da minha vida… são vários e em momentos diferentes. Diria que ninguém tem um único livro da sua vida e a dificuldade, quando me fazem esta pergunta, é precisamente optar. Existem livros que releio e cujos autores me cativam muitíssimo, por vezes sem grande explicação racional. Posso salientar As Velas Ardem até ao Fim de Sándor Márai; Alexis de Marguerite Yourcenar; A Terra das Ameixas Verdes da Herta Muller. Depois descobri, há relativamente pouco tempo, a Shirley Jackson e a Joyce Carol Oates. A Ana Teresa Pereira faz parte da minha vida, bem como Al-Berto, Cesariny, e pode dizer-se que cresci com Florbela Espanca. Achei delicioso o livro Jesus Cristo Bebia Cerveja do Afonso Cruz. Os livros ilustrados são uma paixão, coleciono-os!
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