O autor finalista do Prémio LeYa, Carlos Campaniço, trouxe-nos em 2016 mais um romance de ponta e mais uma vez com enfoque em geografias que me são tão familiares, como as muitas do Alentejo, de onde o autor é proveniente. Com o título As Viúvas de Dom Rufia, a mais recente publicação de Carlos Campaniço, com chancela da Casa das Letras, mantém uma centralidade incólume no velório inesperado do seu protagonista, Dom Rufia, e daí parte e aí regressa sucessivamente para uma multiplicidade de histórias de amores, querenças e intrujices, saídas de uma mesma cabeça. A do protagonista, lá está, nascido órfão, pobre e no interior alentejano, mas com aspirações pertinazes e irreversíveis de riqueza. Um verdadeiro desígnio de aspiração social e económica para fugir ao trabalho do campo, mau pagador de um único pão.

Toda a narrativa conta as ininterruptas emboscadas desse Dom Rufia empobrecido, mas proprietário de uma agilidade e de uma sofisticação implacáveis para contaminar o destino inexorável da sua baixa condição socioeconómica. Sem o domínio de uma única letra do abecedário, mas com a astúcia de um polvo, imiscui-se no seio da urbanidade rural dos lugares por onde passa, com o obscurantismo da época a seu favor. De Fernão Baixo para Beja, do Alvito para Moura, de Viana do Alentejo para Almodôvar, Dom Rufia percorre desalmadamente os lugares da interioridade do início do século XX.

Logo enrola com as suas palavras embriagantes (e, pelos vistos, convincentes) várias mulheres endinheiradas aqui, ali e acolá, um pouco por todo o Alentejo. Na sua variedade de idades, belezas e contornos físicos, vão alterando na proveniência alentejana. A todas mente e para cada uma constrói uma pele diferente. Uma nova roupagem. Tão depressa se apresenta como prestigiado vendedor de ouro, médico, advogado ou futuro «Ministro de Portugal em Paris, Londres ou Sampetersburgo». Todavia, é à mulher mais pobre que encontra, uma vendedora de patos com aspirações a libertar-se da ditadura de uma paternidade asfixiante, que Dom Rufia confere todas as verdades da sua alma.

No final, todas elas surgem no velório, evidenciando-se para além dos aglomerados de flores e de um «sapal de lágrimas», completando a imagem de uma infinidade de viúvas a perder da mais apurada vista e realçando que o seu querido amor tinha «fé na probabilidade das apostas múltiplas». Antes de morrer, curiosamente, e apesar de toda a apetência para a mentira, Dom Rufia padece de sofrimento árduo e «divisões na alma», «um mal de não ser ele próprio durante muito tempo». Ao ponto de lhe surgir «uma vontade de ter os pés nas memórias de infância» (…) «mais forte do que todas as carências de amor».

Sobressai, ainda, neste livro As Viúvas de Dom Rufia, uma personagem deliciosa que soa a consciência ou espécie de voz latente da verdade: Juan de los Fenómenos. Um velho chileno que, entre um «silêncio amplificado» e um «castelhano baloiçado», tem por vocação intrínseca uma capacidade rara de observação da complexidade humana, valendo-se dela para identificar e registar raros fenómenos dos homens que pelas várias terriolas do Alentejo iam ocorrendo inacreditavelmente. É este Juan de los Fenómenos, por sinal, que se dá conta da aparente ubiquidade de Dom Rufia, que tão depressa estava num lugar, como noutro, com postura adaptada a cada uma das diferentes figuras que intermitentemente encarnava.

Junta-se aos personagens mais emblemáticos Homero Dente d’Alho, «o único a quem o sobrinho [Dom Rufia] confiara planos de imaginações e segredos de acontecimentos pouco morais». O mesmo que ficou incumbido de enviar a todas as amantes do protagonista uma carta a anunciar a sua falsa morte… que, afinal, se tornou real. Um ajuste de contas com as autoridades havia Homero Dente d’Alho de fazer por tal feito tão descabido e despropositado. Mesmo não aceitando todas as manigâncias de Dom Rufia, o seu tio faz neste romance de companheiro fiel e irredutível. O maior dos confidentes.

Classificam este livro a qualidade imagética (mais apreciada ainda por quem conhece, como eu, todos os lugares do Alentejo abordados), a criatividade prodigiosa, o equilíbrio entre o estilo linguístico cuidado e a distância vocabular de quem multiplica vocábulos, a agilidade de transportar a narrativa de uma história para a outra e da outra para a outra, fazendo do nada surgir personagens sempre novas a justificar presença no cenário basilar do enredo, o velório. Expressões a fazer esquecer os lugares comuns das letras, sabedoria e mundo a lembrar uma geografia descentralizada e diferente da de todos os dias. Uma radiografia das diferenças, das aspirações, das possibilidades e dos obstáculos. Também da loucura. Do amor. Da morte. Como, grosso modo, toda a boa literatura tem, com traços análogos aos da vida como ela é.

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