Carlos Campaniço

Com o rasgo, a inteligência linguística, as circunstâncias e o background cultural do seu Alentejo sempre presente, Carlos Campaniço, um dos melhores prosadores da ficção portuguesa da atualidade, voltou este ano a publicar pela LeYa. É com o título As Viúvas de Dom Rufia que o autor nos conta mais uma vez uma boa história: um protagonista nascido pobre e órfão no interior de um Alentejo do início do século XX desafia a gravidade e, com aspirações pertinazes e irreversíveis de riqueza, imiscui-se numa multiplicidade de histórias de amores, querenças e intrujices em nome de um desígnio de aspiração socioeconómica que o coloque no sentido oposto ao do trabalho do campo, mau pagador de um único pão. Mas este é também o romance sobre a morte desse protagonista e a centralidade incólume do seu velório inesperado, de onde partem e onde regressam todas as histórias de amor. Carlos Campaniço, o primeiro entrevistado do Entre | Vistas, finalista do Prémio LeYa e reconhecido pela Bertrand, nomeadamente por Miguel Real, como um dos autores da Geração de Ouro, volta aqui à conversa com o seu As Viúvas de Dom Rufia a originar as perguntas.  


Dom Rufia, o protagonista de As Viúvas de Dom Rufia, não quis escravizar-se no campo de sol a sol, para ganhar «o que mal dá para pagar um pão». Esta atitude é à época do romance (início do século XX) uma previsibilidade legítima ou um ato de ousadia?  

Creio que o que falta em previsibilidade ou legitimação, relativamente ao comportamento e à ação do nosso Dom Rufia, sobra em ousadia. É uma tremenda ousadia ter feito passar-se por quem não era, recorrentemente, e aceder ao convívio com a elite socioeconómica da época. A questão entre a moral e a necessidade está em cima da mesa, o leitor que decida sobre o comportamento desta personagem.

Há indivíduos para quem a ascensão social e económica é mais importante que os escrúpulos. Houve no passado, existem hoje e, certamente, haverá no futuro, porque a diversidade do comportamento humano já nos ensinou isso.

Uma personagem como Dom Rufia, nascido órfão, pobre e no interior alentejano, mas com um desígnio incontrolável de riqueza e, nessa medida, mentiroso encartado e colecionador de histórias de amor com mulheres endinheiradas… poderia surgir nos dias de hoje, em que tudo se sabe? Ou apenas tem cabimento no Alentejo profundamente rural do início do século XX?

Podia, pois. Não sei se com estes contornos, se tão arrevesado, ou com esta dimensão de embustice, mas não poucas vezes lemos ou ouvimos histórias de gente que se faz passar por médico, advogado, falso representante, falso licenciado, gente que tem dupla família, etc. Há indivíduos para quem a ascensão social e económica é mais importante que os escrúpulos. Houve no passado, existem hoje e, certamente, haverá no futuro, porque a diversidade do comportamento humano já nos ensinou isso. Esta história é uma ficção que, retirando nela alguns exageros da imaginação, podia ter sido verdadeira, pela falta de comunicação à época. Talvez a diferença é que com a comunicação dos nossos dias, algumas das suas mentiras teriam “perna curta”.


Capa


As «divisões na alma» e o encontro com as memórias de infância que Dom Rufia acaba por ter são sintoma de um vergar da sua personalidade ou de um ganho de consciência com pretensões de ensinamento ao leitor?

Tenho dúvidas que esta obra tenha um propósito moral por parte do autor. O que me parece é que Dom Rufia repensou a sua vida depois de uma vida de fracassos quanto à sua principal aspiração: a de ser rico. O acumular de romances só acontece porque as amantes são um meio para que chegue ao fim pretendido. Ter muitas amantes não era a sua avidez, por isso uma certa depressão, mesmo tão bem-sucedido nesse campo. O que o devastou foi a consciência de que não cumpriria o seu sonho.


imagem 1


Também em linha com preocupações sobre a consciência, surge o velho chileno Juan de los Fenómenos que, atrás de uma inclinação para a filosofia e uma sensibilidade popular apurada, parece estabelecer-se como uma voz interna? É assim?

Não sei se é uma voz interna. Mas, certamente, cria uma dicotomia entre a utopia e a avidez materialista de outras personagens. É a personagem que mais nos fará pensar. Nesse aspeto, é uma voz.

Homero Dente d’Alho, o tio de Dom Rufia, parece materializar o caráter e a visão política que o protagonista não tem. É também uma metáfora da pequena dimensão das qualificações e do nível cultural daquele cenário espaciotemporal?

É, certamente. Repare-se que um autodidata consegue ter um nível cultural e saberes que a classe dominante não tem. Aliás, todo o romance põe a nu a falta de escolaridade e de cultura das elites. Parte dos embustes de Dom Rufia acontece porque os seus interlocutores endinheirados não têm bases de conhecimento e de crítica para detetarem as suas mentiras.  

A Literatura sempre teve dois temas preferenciais: a morte e o amor. É difícil fugir do impacto psicológico, e até social, destes dois fenómenos tão humanos.

Neste livro, temos a evidenciar o estilo realista, não só um meticuloso embusteiro de mulheres, mas também umas quantas mulheres em regime de adultério nas barbas dos respetivos maridos. A traição é o tema eterno, desde Homero, uma das fontes elementares da cultura europeia? Ou o tema eterno é, simplesmente, o amor?   

A Literatura sempre teve dois temas preferenciais: a morte e o amor. É difícil fugir do impacto psicológico, e até social, destes dois fenómenos tão humanos. Relativamente à questão do adultério, o seu retrato acontece porque, desta vez, como muitas outras, este livro baseia-se na condição humana: lacunas, virtudes, defeitos, etc.: aquilo que nos faz humanos, também. Nem só as mulheres são adúlteras, não há, nem haverá nunca, nas minhas obras, esse estereótipo. Muitas delas são até ludibriadas pelas falsas promessas do também adúltero Dom Rufia. O adultério e a traição eram uma realidade na sociedade de então, por muito religiosa ou moralista que fosse. É difícil, e até um logro, que o autor fugisse a esse tema. Neste livro, esse fenómeno sobressai mais porque é uma das suas matérias-primas.

As Viúvas de Dom Rufia retrata manifestamente um conjunto de diferenças socioeconómicas de um Alentejo remoto, de há um século. Fala, inclusive, de uma urbanidade na ruralidade… Que evolução é que, em cem anos, lhe parece ter havido a esse nível?

Não vejo que possamos comparar a sociedade rural, paupérrima e analfabeta de então com as de hoje. O espaço, a gastronomia, a cultura do Alentejo de hoje mantêm-se muito próximos dessa época, mas já não vejo uma sociedade de classes. Há hoje um Alentejo com algumas dificuldades, como um pouco em todo o país, mas ao mesmo tempo com gente distinta em muitas áreas, com turismo, com tecnologia, com uma população escolarizada. Nesses campos, houve uma evolução tremenda.

O Dom Rufia, conforme nos diz a Explicação ao Leitor a encerrar o livro, consiste num antepassado do narrador cujas memórias lhe terão sido passadas por um seu avô. No Alentejo há mais espaço e tempo para a conversa intergeracional e a transmissão de histórias e valores?  

Os jovens do Alentejo de hoje não fazem diferença dos jovens dos centros urbanos: ouvem a mesma música, acedem à mesma tecnologia, vestem-se da mesma maneira. É legítimo. Espero que isso não seja impeditivo nem incompatível com o valor da oralidade, do conhecimento da “coisa” rural, com a valorização das raízes. Por exemplo, o cante alentejano é praticado por imensos, imensos jovens. A paixão pelo cante mantém-se, nalguns casos até com maior fervor. Pode ser um indicador.

Há dois anos não víamos uma luz, a esperança era nula. Hoje há uma restiazinha de utopia. Mas falta fazer tanto. Falta sermos tão corajosos!

Este seu romance já obteve críticas literárias profundíssimas que o compararam com Camilo ou Aquilino (falo do crítico Fernando Martins). Revê-se na comparação com estes prosadores? É um orgulho para qualquer escritor da atualidade…  

Ui. Ninguém se compara a Camilo, muito menos a Aquilino. É um orgulho poder ser lido por gente exigente, como o citado Fernando Martins. Escrever é árduo, poder ser lido, criticado e divulgado (como é o caso) é um privilégio.

Passados mais de dois anos da nossa primeira entrevista, não posso deixar de lhe perguntar que leitura faz, à data de hoje, do país em que vivemos? Partindo do pressuposto de que um escritor é um observador e um crítico da realidade, por excelência, qual é a sua visão do Portugal que temos em mãos? E para onde caminha?

Não há dúvidas de que o país não é um oásis. Quando se tem quase metade da população pobre ou muito pobre confrange todo e qualquer que tenha sensibilidade social. Mas a verdade é que hoje os protagonistas políticos são outros e não há a mesma crispação social. Há dois anos não víamos uma luz, a esperança era nula. Hoje há uma restiazinha de utopia. Mas falta fazer tanto. Falta sermos tão corajosos! A aparente concertação política à esquerda ainda está muito aquém da transformação que o país necessita. Aceito os dias de hoje como uma base, não como um ponto de chegada.


Carlos-Campaniço


Quando podemos ler o seu próximo livro, que sei que já foi entregue à estampa?  

Talvez este ano. Caberá à Editora essa decisão. O que posso dizer é que será um livro diferente em muitos aspetos, começando pelo espaço e pelo tempo da ação.

Que livro não quererá perder em 2017?

Todos. Pudesse eu lê-los todos… Mas como sempre, tentarei ler os meus autores nacionais e internacionais favoritos e descobrir nova e boa literatura. Os bons livros são o combustível da minha paixão pela literatura, o que mais me acicata escrever.

Carlos Campaniço

.

error: Content is protected !!