Qualquer compromisso com o futuro pressupõe uma relação consciente, improrrogável, com o passado, o presente e o futuro. O ensaio Compromisso com o Futuro, de Francisco Jaime Quesado, publicado pela Media XXI, tangibiliza essa lógica cronológica, com um ritmo ordenador dado ao tempo, numa evidência relevante sobre a agenda de mudança em que nos devemos (saber) envolver, enquanto cidadãos com desafios individuais e coletivos.

Porque há «um exercício de ligação permanente com o futuro que nos move a todos e que nos incentiva a ter uma atitude permanente de construção sobre o que somos, o que fazemos, o que queremos ser e o que queremos fazer». Diz-nos Francisco Jaime Quesado na Introdução, abrindo uma janela de leitura para três importantes capítulos, que vão, paulatinamente, página a página, coligindo os tempos em que nos movemos (passado, presente e futuro) e ao longo dos quais vamos assistindo a uma reflexão substancial, com referência a dezenas de outros autores, numa alusão multidisciplinar, de Leonardo da Vinci a Albert Einstein, Simone Weil a Confúcio, José Tolentino de Mendonça a Pablo Picasso ou  Yurval Noah Harari a Lídia Jorge.

A perspetiva sobre o futuro é indesligável da nossa avaliação do passado e da valorização do seu sentido. «Somos o que nos foi dado poder ser e, mesmo que pudéssemos ser mais do que somos, o que importa é saber ser e saber estar e fazer disso a base do nosso processo de realização pessoal e de procura de um sentido permanente de felicidade com que nos possamos sentir confortados». E por que futuro, afinal, nos devemos debater? O autor responde de forma convicta: por «um futuro que valha a pena e em que possamos ser e estar de forma participativa e com um sentido de compromisso».

Este ensaio traduz um verdadeiro exercício de cidadania, em linha com a Plataforma Colaborativa Sharing Knowledge, criada por Francisco Jaime Quesado no início da pandemia, em março de 2020, com o «propósito de partilha de ideias e de conhecimento que deu sentido a uma iniciativa que tem feito o seu percurso e se constitui como um verdadeiro ponto de encontro diário de construção de soluções para o futuro que queremos ter». Este exercício, com efeito, tem sido endereçado a partir de um entendimento comunitário e de agregação. É uma discussão de e para todos numa sociedade cuja matriz foi, nestes últimos anos, radicalmente alterada, com impacto determinante nos hábitos do dia a dia de todos nós. «Estas mudanças são o corolário natural dos novos tempos que passámos a viver, e importa sabermos construir novos contextos que nos permitam continuar a manter viva a ambição do futuro». Mas não há futuro sem passado, naturalmente.

Compromisso com o Futuro, Francisco Jaime Quesado 74

O Sentido do Passado

O passado deve ser visto, pois, como um «referencial de vida». «Temos, mais do que nunca, de ser capazes de recriar os nossos percursos e de referenciar (…) as marcas que ajudaram a construir o nosso propósito individual». A revisitação do passado deve saber escavar sobre a(s) memória(s), mais uma vez individual e coletiva, para uma melhor perceção sobre o estado presente e a agenda de construção do futuro. E a leitura que tivermos a capacidade de fazer do passado exige um «jogo da seleção dos momentos que nos marcaram». Numa alusão ao pensamento de António Damásio, o autor apela à relevância, na análise do passado, quer dos momentos bons, quer dos menos bons, que também nos definiram e determinaram na forma como evoluímos. Para a avaliação do passado, surgem no ensaio do autor cinco elementos interpretativos essenciais: a identidade, a cultura, a comunidade, o conhecimento e a liberdade.

«A identidade é o que somos, mas também o que somos capazes de vir a ser», refere, numa menção à permanente oscilação em que vivemos entre o que (já) somos e o que seremos. Porque a vida é essa linha de evolução dinâmica, imprevisível e porventura surpreendente, em muito dependente do sentido que descobrimos que possa ter. A leitura que tenhamos a habilidade de fazer do passado e a ambição do futuro estão ambas, consolidamos esta ideia no ensaio, intimamente relacionadas com a dimensão cultural. O autor recorda-nos que «o pensador espanhol Daniel Innerarity defendeu que uma sociedade sem cultura dificilmente conseguirá ter um propósito mobilizador para todos os que dela fazem parte». Olhar para o passado tem implícito, ainda, o sentido comunitário, ancorado, afinal desde a Antiguidade, na confiança que depositamos no outro e que inspiramos ao outro e, nessa medida, na galvanização que conseguirmos colocar na forma de nos mobilizarmos em torno do bem comum, rumo ao futuro. A relação com todas as dimensões do tempo está vinculada, adicionalmente, ao conhecimento, enquanto bússola na resposta às perguntas mais elementares – de onde vimos, onde estamos e para onde vamos – e a todas as que forem surgindo e que sejam condição sine qua non para a evolução da humanidade. A pertença a uma sociedade com este sentido de ambiente colaborativo, de participação e cidadania remete para uma ideia de liberdade, ainda que, dadas as transformações recentes, essa ideia possa ser-nos apresentada avulso, sem consistência. Esta obra, reparemos, coloca-nos sobre os olhos também «um breve exercício de reflexão sobre a forma como devemos ser capazes de fixar o futuro num contexto de profunda incerteza e complexidade». Daí a relevância de preservar os valores de referência que trazemos. Far-nos-ão falta, certamente.

O Momento do Presente

«Viver o momento do presente é, em larga medida, estruturar as bases para que o futuro possa estar de acordo com as nossas expectativas». Começamos por ler. E essa estruturação exigente, mas necessária, é perspetivada por Francisco Jaime Quesado a partir de novos cinco elementos: rotina, simplicidade, autenticidade, criatividade e felicidade.

A rotina ilustra um «contrato de confiança» com o entendimento que se tem sobre as atividades que melhor defendam as expectativas individuais e coletivas sobre o futuro. Mas a aceleração introduzida pelo digital veio desafiar os «princípios clássicos do passado», questionando o papel da rotina e redefinindo paradigmas e, até, a relação com o espaço e o tempo. Um aparente ganho de tempo oferecido pela tecnologia obriga à permanente capacidade de fazer escolhas e (re)definir prioridades. Nessa descoberta, seguindo Leonardo da Vinci, a figura mais vezes citada no livro, é relevante a simplicidade como «a última sofisticação». Uma definição de dicionário para a simplicidade poderia ser, pois, autenticidade, essa sentinela do presente e da criatividade que o futuro exige. A criatividade, aliás, consiste num fator nevrálgico do desenvolvimento das organizações, da academia e demais centros de competência e da qualificação das cadeias de valor, como forma de competitividade e diferenciação económica. A ombrear com estes eixos, surge a felicidade, a partir da qual o autor aponta um certo sentido estratégico de urgência. «A felicidade é hoje – e será cada vez mais – um compromisso com as diferentes dimensões da nossa forma de estar em sociedade». Reforça o autor, para a enquadrar, à felicidade, como o grande desiderato que todos temos na aparentemente inofensiva rotina do quotidiano.

A Ambição do Futuro

A análise que é feita ao futuro, neste ensaio, começa por nos recordar que «devemos ser capazes de aproveitar o sentido do passado que tivemos e o momento do presente em que vivemos, para sabermos criar as condições para uma abordagem mais inteligente dos tempos que temos pela frente». E as variáveis de incerteza, crise e imprevisibilidade que complexificaram o presente e, por conseguinte, a forma de prever o futuro apelam, refere o autor, «a novos modelos de organização e de governance». Porque aquilo que todos queremos, porventura, é um futuro melhor. E nesse chapéu cabem novas cinco ideias: propósito, confiança, esperança, verdade e mudança.

Do propósito cristalizado por Pablo Picasso, ficou a ideia de que estamos destinados a uma conceção de utilidade e excelência individuais que possa, de alguma forma, ser colocada ao serviço de um propósito comum e face ao imperativo de um rumo coletivo. Ora, o sentido de propósito assim colocado é indesligável, lembra-nos o autor, da necessidade de definir prioridades e assumir decisões, o que exige, por sua vez, competência na leitura da complexidade dos sinais do tempo atual. E esta atitude anda de mãos dadas com uma ideia de sociedade da confiança. O que nos diz o autor, mais uma vez, é muito claro: «A confiança é o que somos e o que somos capazes de dar aos outros e de receber daqueles a quem também damos». Se à confiança ligarmos a esperança, imaginemos aonde podemos chegar, ainda que «numa sociedade que sabemos vir a ser diferente, porque, de facto, já não pode voltar a ser igual». Os princípios e critérios tradicionais podem e devem nortear a capacidade de observar e avaliar a realidade. Mas a complexidade do tempo atual, aliada às transformações tecnológicas e aos desafios da IA, obriga à definição de uma nova graduação ocular para a observação da verdade, condição impreterível para a sobrevivência numa sociedade que Manuel Castells, como recorda o autor, caracterizou «em rede». Não pudemos, contudo, imaginar quão «em rede» viria, efetivamente, a ser a sociedade em que hoje vivemos. Porque o tempo é composto, sabemos, de mudança. «A mudança tem de ser sentida e aceite como a condição natural de quem entende que os tempos não são sempre iguais e que importa saber criar as condições para que a evolução natural da humanidade tenha um sentido que faça sentido». Lemos.

O que Francisco Jaime Quesado nos propõe, neste ensaio, é um pacto fundamental de gerações, nessa memória viva sobre a história que nos trouxe até aqui e que nos impele a chegar (mais) longe. Quando um dos pensadores mais renomados da atualidade, o filósofo germano-coreano Byung-Chul Han, nos diz a propósito do tempo que o «verdadeiro problema consiste no facto de a vida atual ter perdido a possibilidade de se concluir com sentido», eis senão quando Francisco Jaime Quesado nos propõe este compromisso com um olhar simultaneamente no passado, no presente e no futuro. Porque quem olha só para o futuro, perde sustentação; e quem olha só para o passado, perde rasgo. E, estaremos de acordo, precisaremos de ambos para o projeto de ambição – e com sentido – com o qual queremos intervir e mudar o mundo. Para melhor.

Compromisso com o Futuro, Francisco Jaime Quesado 75

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