Em 2015, um grupo de leitoras assíduas do Entre Vistas desafiou-me a estruturar um workshop de escrita vocacionado para quem quer, simplesmente, escrever sempre bem (e isso, por si, já não é pouco). Escrever é uma das mais nobres formas de comunicação. A escrever elaboramos pensamentos como não o sabemos, por norma, fazer na oralidade. Escrevemos tantas e tantas vezes, da SMS ao e-mail, do texto técnico ao menos técnico… Devemos, por isso, fazê-lo da melhor forma. É da nossa língua, e da nossa identidade cultural, afinal, que estamos a falar.
Foi com esta consciência que criei o workshop “Escrita: para que te quero?”, através do qual são identificados os requisitos e as ferramentas para escrever bem e sempre melhor, no papel ou no digital, independentemente de a escrita ser ou não uma ferramenta principal da nossa atividade escolar ou profissional ou, até, uma ambição de vida. Numa abordagem sobre a importância da escrita no dia a dia.
Em abril de 2015 lá fui, então, em duas manhãs de sábado, falar sobre escrita. Em meia dúzia de horas não se ensina ninguém a escrever melhor. Mas é pelo menos possível deixar sementes e lançar uma pergunta: “Escrita: para que te quero?”. O sucesso e a boa adesão ditaram que em 2016 definisse uma 2.ª edição e voltasse a olhar para o programa e os documentos de trabalho e os atualizasse para junho. O mesmo workshop, “Escrita: para que te quero?”, decorreu então de novo neste último 4 de junho, na Azinhaga, uma deslumbrante quinta na Trafaria que dinamiza workshops para miúdos e graúdos, desde a música, à escrita, ao contacto com a natureza. É um lugar onde aprender se faz pela arte e o ofício. E sobre o ofício da escrita falámos assim:
Ao olharmos para a evolução do século XX e a transição para o século XXI, damo-nos conta de que houve paulatinamente uma passagem da cultura assente na palavra escrita para um modelo que privilegia a cultura essencialmente visual e sonora.
A matéria-prima que desencadeia o conhecimento – a informação – era no tempo dos nossos antepassados veiculada fundamentalmente através do texto escrito e, de há uns anos para cá, com a globalização e o boom das novas tecnologias, a informação é transmitida através de uma enorme diversidade de canais mediáticos e digitais, com destaque para a Internet e os diferentes devices que nos cercam diariamente, como o telemóvel, o tablet e o computador.
Mas esta predominância da cultura visual e sonora não está apenas indexada à digitalização da informação. Vem detrás. Reparemos no impacte civilizacional da invenção da rádio, da fotografia, do cinema e da televisão. No entanto, os ecrãs dos devices são cada vez mais pequenos (para acompanharem a lógica da mobilidade) e é por isso que este enquadramento se repercute na tendência cada vez mais acentuada para a minimização da escrita, que, por sua vez, leva a que de uma maneira geral escrevamos cada vez pior.
Seja como for, todos nós temos aptidões para escrever, assumindo diferentes registos: institucional, objetivo, mas também criativo e mais intimista. E são vários os tipos de texto que, com maior ou menor regularidade, nos vêm parar às mãos:
– e-mail
– SMS
– carta
– press release
– parecer jurídico
– relatório médico
– plano de contingência
– plano de comunicação
– trabalho académico
– crónica
– notícia (de imprensa, rádio, tv ou online)
– reportagem
– bula
– romance
– ensaio
– relatório de estágio
– ata de reunião
– peça de teatro
– argumento cinematográfico
– etc.
Mas, atenção, desmistifiquemos algumas ideias sobre a escrita. Devemos desde logo desconfiar dos textos difíceis, herméticos, cheios de bonitos adjetivos e empoeirados de adornos. Muitas vezes, servem por via da linguagem intrincada e emaranhada para esconder a falta de ideias e a incompetência do autor que se faz valer do artifício para se valorizar. Reparem que os grandes filósofos usam uma linguagem simples e têm uma extraordinária capacidade de comunicação, mesmo tratando-se de pensamentos muito profundos. Tomás de Aquino (século XIII), por exemplo, dedicou-se a investigar a linguagem popular, porque acreditava que encerrava as mais profundas verdades sobre a existência. E Séneca, um dia, escreveu assim:
Em todos os processos de comunicação, como é sabido, existem pelo menos um emissor, uma mensagem, um canal e um recetor. Mas este processo é diferente se nos referimos à oralidade ou à escrita.
Oralidade: o emissor utiliza o vocabulário para falar, mas pode apoiar-se numa série de outros códigos linguísticos que a comunicação não verbal encerra, como: entoação de voz, gestos, expressões faciais e do corpo, interação com o meio, reações diversas. Além disso, há no falar uma tendência para repetir as ideias. Não há também a preocupação exacerbada de acentuar ou pontuar, dado que na oralidade é a entoação dada, a articulação e a dicção que transmitem o significado desejado.
Escrita: o emissor baseia-se no vocabulário que irá estabelecer a comunicação entre ele e o destinatário. Além disso, e diferentemente da fala, a escrita exige uma preocupação maior, pois a informação passada não se apagará com o tempo, fica registada num determinado suporte. Um exemplo bem vivo é a Bíblia, a primeira grande obra da literatura.
Quais os aspetos a ter em conta na organização de um texto?
Balizar o tema, identificar o propósito e o público ao qual se destina o texto:
– Todos os textos, independentemente do tema, têm um propósito: anunciar, promover, comunicar, informar, expor, sistematizar, etc., um conjunto de informações. Quando balizamos o tema, devemos estar conscientes do público-alvo. Se escrevemos um texto sobre nutrição para ser lido por especialistas em nutrição, devo recorrer a linguagem técnica, interiorizada e dominada por esta classe profissional. Mas se um texto subordinado a este mesmo tema da nutrição for orientado para o público em geral, devo saber adaptar e simplificar a linguagem.
– Todos os textos têm um público-alvo, em conformidade com o qual os conteúdos deverão ser pensados. Se tenho de escrever um texto para crianças entre os 6 e os 10 anos, não vou obviamente recorrer a uma linguagem orientada para alunos universitários; se tenho de escrever um press release a divulgar o lançamento de um novo serviço de uma empresa, devo concentrar-me na forma como posso convencer os jornalistas a escreverem sobre esse serviço; se tenho de redigir um trabalho académico, devo seguir os trâmites da linguagem académica, sem desvios.
Definir as mensagens e o peso das informações a transmitir:
– Um texto bem escrito transmite ideias claras e objetivas e filtra os diferentes pesos das informações veiculadas. As informações não são todas iguais. Em função do tema, do público-alvo e do propósito do texto, as informações adquirem importâncias diversas. Por exemplo, um texto que mostre que os temperos usados na comida possuem qualidades terapêuticas não serve para uma publicação cujo público é formado por nutricionistas. Servirá apenas para o público leigo. Já a descoberta de um efeito específico do alho sobre o sistema nervoso, por exemplo, é uma informação de alta qualidade para os especialistas em nutrição. Há que, por isso, dominar muito bem o tema sobre o qual se escreve. Uma vez feita a triagem sobre se o que temos em mãos é relevante, pouco relevante ou irrelevante em função do tema, do propósito e do público a que se destina o texto… então estaremos preparados para escrever!
Redigir o texto, com estrutura a três tempos: introdução, desenvolvimento e conclusão:
– Na introdução, que pode ter um só parágrafo, o autor deve expor a tese, a ideia principal do texto, a mensagem principal, as informações mais relevantes, deve “dizer a que veio”, de forma que, se o leitor ler somente esse parágrafo, ele já terá uma boa noção do que diz todo o artigo.
– O desenvolvimento trará dados adicionais, que corroboram a tese exposta na introdução.
– A conclusão pode extrair informações e ideias importantes a partir dos dados obtidos, a partir da tese apresentada.
Fazer leitura final do texto e, se possível, double check.
Quais as principais técnicas de construção textual?
Rigor e correção em quatro aspetos elementares da linguagem escrita:
– ortografia (vertente da gramática que ensina a escrever corretamente)
– sintaxe (estudo das regras que regem a construção das frases)
– acentuação (aplicação de símbolos escritos sobre as palavras)
– pontuação (recurso que introduz na escrita ritmos e melodias da língua falada)
Articulação
– na articulação das orações e frases e dos parágrafos, há que saber recorrer com astúcia a expressões de ligação, como os pronomes, as conjunções (causalidade, temporalidade, oposição, consequência, condição, conclusão, etc.), sequências numéricas (em primeiro lugar, em segundo plano, etc.), pois são elas que contribuem para a harmonia e a coesão do texto.
Coesão
– é a ligação harmoniosa entre os parágrafos, com vista à evidência de um fio condutor de ideias que evoluem num quadro consistente de significados, sem repetições de palavras e cacofonia.
Coerência
– é a lógica interna do texto, no pressuposto de que o assunto abordado tem de manter-se intacto e sem distorções, por forma a facilitar o entendimento das várias mensagens e da mensagem global.
Clareza
– está intimamente ligada à coesão e à coerência e remete para a capacidade de levar o leitor, por via da nitidez e da transparência, a entender com facilidade a mensagem; é uma condição fundamental da compreensão do texto.
Quais as dicas para a clareza textual?
– dominar bem o tema (não posso discorrer com clareza sobre um tema que não conheço);
– dar preferência a frases curtas, com argumentos fortes;
– relevar a pontuação como instrumento para evitar a ambiguidade;
– privilegiar (nos textos não literários) a ordem textual simples: sujeito + predicado + complemento;
– recorrer a exemplos concretos para materializar/esclarecer ideias complexas e abstratas;
– evitar recorrer a abreviaturas e siglas (nem todos os leitores conhecem a designação dos termos pela sua abreviatura ou sigla);
– deixar as expressões subjetivas confinadas ao texto literário (o subjetivismo é um inimigo da clareza);
– escolher cuidadosamente o vocabulário (termos obsoletos e obscuros prejudicam a clareza textual);
– matar dúvidas e objeções.
Quando já dominamos a forma de organizar um texto e aplicamos com agilidade as técnicas de construção textual, devemos evoluir para a liberdade de assumir o nosso próprio estilo de escrita. E isso é independente do tipo de texto que estamos a escrever. Mesmo nos textos não literários, posso deixar o meu cunho pessoal:
- experimentar começar um texto com uma pergunta (para criar um laço emocional entre autor e leitor);
- usar com arte palavras e expressões de transição, sem que as mesmas pareçam bengalas sem as quais todo o texto se desmoronaria como dominó;
- fazer um bom uso de repetição de ideias, no momento certo do texto, com vista à solidez das ideias e ao reforço de pontos de vista;
- recorrer a sinónimos;
- usar metáforas, comparações e analogias;
- recorrer a bullet-points;
- usar palavras simples, mas persuasivas (para que mexam com a mente);
- contar uma história.
E que resposta para a pergunta “Escrita, para que te quero?”
A escrita é uma importante ferramenta de comunicação e interação. Através da escrita, criamos laços de entendimento com o leitor (não me interessa de nada escrever algo que apenas eu e só eu entenda). Quanto mais competências de escrita conseguir desenvolver, mais resultados terei na interação com o meu público-alvo e, por conseguinte, mais rica será a relação que com ele estabeleço:
– despertar interesse para que ele leia o meu texto;
– envolvê-lo de tal forma com um texto que o levo a ler até ao fim;
– fazê-lo agir no final do texto, por força de uma boa call-to-action.
Para escrever sempre bem, por fim, é imprescindível assumir um compromisso sem o qual ninguém (mesmo ninguém) poderá escrever melhor: ler, ler, ler.
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