Num livro que abre e fecha com citações de Ayrton Senna e arranca com um texto (eu diria) emocionado do seu filho André, João Neto, o empresário, empreendedor e maratonista conta na primeira pessoa uma história de vida que sempre lhe disseram poder dar um livro. E deu. Correr Sem Limites, acabado de publicar pela Oficina do Livro.
André, o filho orgulhoso que assina o Prefácio, enaltece desde logo o valor dos valores do pai: «demonstrativo do caráter simples com que o meu pai encara a vida, fica muito mais feliz por ver o seu próprio filho a integrar um seu projeto, em detrimento de qualquer outra pessoa». Resume o livro, referindo que aquilo que encontraremos neste testemunho aborda «os obstáculos e os desafios que foi encontrando no caminho», lembrando que «as maratonas são apenas o ponto de partida para esta história de autossuperação» que nos traz lições de «autodisciplina, rigor e perseverança». Acrescenta o André que estamos perante uma história de humanidade, dado ser simultaneamente possível «ser pai de família, empresário, amigo, voluntário, um indivíduo cheio de atividades e mesmo assim encontrar forma de se dedicar tanto a um hobby». Um hobby que afinal transformou o João Neto. Aqui, o autor fala-nos «das vitórias para partilhar as dificuldades» e dos «sucessos para explicar os processos».
«Diz-se na China que uma viagem de mil milhas começa com o primeiro passo». Mesmo que esse primeiro passo seja dado aos 45 anos. Como aconteceu com o João antes de se lançar nas maratonas. Desde então, já cumpriu as 6 Majors (Nova Iorque, Chicago, Londres, Berlim, Tóquio e Boston), as maratonas dos Polos Norte e Sul, a volta ao mundo em 7 maratonas, 7 continentes, 7 dias seguidos e percorreu o Evereste, a montanha mais alta do mundo, consubstanciando-se num palmarés que soma hoje 30 maratonas em alguns dos lugares mais recônditos do planeta, alguns dos quais onde Portugal não havia sido representado. Ao longo do tempo, evoluiu a partir de um atleta autodidata para um desportista cada vez mais consciente e suportado num corpo multidisciplinar de profissionais, atraindo progressivamente o investimento de marcas patrocinadoras e o interesse de organizações em oradores inspiracionais. Na normalidade que alega ter, não se satisfaz com nenhum resultado. Enfrenta com audácia o diálogo das vozes interiores, a que se refere no livro, que lhe dizem ora para avançar, ora para desistir. Não é complacente com a desistência, porém. É ousado. Irreverente.
«Corro para ser eu». Neste seu livro tremendamente honesto, nas passagens pessoais, profissionais e desportivas, em todas; no seu tom cinematográfico que nos prende, entre as opções bem geridas de ir atrás, quando necessário, para contextualizar etapas; com dados lançados sobre o seu caráter, em primeiro lugar, os seus valores, a sua cosmovisão, o lugar no mundo que reclamou para si, à custa de trabalho e dedicação, sem espaço para violar os alicerces em que nasceu a sua vida e que vêm de um património familiar, os valores invioláveis, mais uma vez; com dados lançados sobre a capacidade de sonhar, de deixar uma marca, ir além do imaginável sem olhar à qualidade do que é possível ou impossível, porque essa medida depende da sua vontade e a sua vontade, é evidente ao lermos, é maior do que o Evereste; com dados lançados sobre, mais do que a superação, a transcendência, o toque naquele outro lado que o comum dos mortais não toca por nem lhes ocorrer existir, quanto mais…
Neste Correr Sem Limites, damo-nos conta da complexidade da vida, da vida como ela é. É que são colocadas em causa as «fórmulas ultrassimplificadas para vidas de sucesso» e são-nos dados a ver, camada sobre camada, vários dos paralelismos que transitam da vertente familiar e pessoal para a profissão e da profissão para o desporto e do desporto para a vida. Nas diversas oportunidades profissionais de chegar longe, o João vai integrando a clareza do seu caráter, mostrando como se de um desenho escolar se tratasse quais as fronteiras éticas, as linhas vermelhas, o preço que não se paga.
Mas este livro é, ainda, e porventura aí com maior intensidade, a inspiração deixada a dois filhos extraordinários. Para além do André, o livro fala-nos na força contagiante da Mariana. Uma menina inspiradora a quem foi diagnosticada a síndrome de Joubert e que já correu com o João. Mais do que isso, à Mariana o João prometeu nunca desistir. E não o fará. O exemplo que dá aos filhos é de superação, mas fundamentalmente é um exemplo de como ser humano. E aí reside a grande história de quem corre para ser. E é.
Fotografias com cortesia de Christophe Guerreiro.
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