Os magníficos Anabela Mota Ribeiro e André E. Teodósio são os autores do programa Estar em Casa, decorrido este fim de semana pelo segundo ano consecutivo e em comemoração do 125.º aniversário do Teatro São Luiz, com o tema memória e um apelo a pensar a casa. Uma das escritoras convocadas para essa reflexão tão essencial foi a prodigiosa Clarice Lispector. E o seu especialista maior, Carlos Mendes de Sousa, professor da Universidade do Minho, usou da palavra e, durante uma hora bem contada, contou “O interior em Clarice Lispector”, uma das sessões do fundamental Estar em Casa. Ouvi Carlos Mendes de Sousa de olhos abertos. Cheia de encantamento e interpelação (no sentido essencial de José Tolentino Mendonça).
Carlos Mendes de Sousa começa por mostrar uma fotografia de Clarice, em casa. Avança para uma referência à ensaísta, dramaturga, crítica literária francesa Hélène Cixous, discípula de Jacques Derrida e associada ao movimento feminista em França, «com um papel muito importante numa primeira fase de divulgação de Clarice no estrangeiro». «Hoje, Clarice é muito conhecida, sobretudo no mundo anglo-saxónico, em parte devido à biografia de Benjamin Moser». Ficamos em seguida perante Clarice na sua única entrevista concedida à televisão, em 1977. Carlos Mendes de Sousa remete-nos para o embaraço vivido pelo entrevistador, Júlio Lerner, perante os silêncios constrangedores de Clarice, galvanizados todavia por respostas abruptas: «Eu acho que quando não escrevo estou morta». «É dito com uma força incrível. Há uma dimensão metafórica, é certo, mas há muito mais do que isso», diz-nos Carlos Mendes de Sousa. Chega-nos depois à conversa uma passagem do escritor e jornalista António Calado, que conviveu com Clarice sobretudo nos anos 40, e dizia: «Havia sempre nela um afastamento. Acho que a conversa que mantinha consigo mesma era intensa demais». O mesmo António Calado que se surpreende com a condição judaica de Clarice e que nos leva à sua pedra tumular, apenas com inscrição da morte, dado o enigma em torno da data do seu nascimento. Entretanto consensualizado: 10 de dezembro de 1920.
Carlos Mendes de Sousa volta a Hélène Cixous para a citar sobre Clarice, numa comparação direta e destemida com [Rainer Maria] Rilke, [Franz] Kafka, [Arthur] Rimbaud, [Martin] Heidegger, relevando uma abordagem filosófica clariciana que chega a ir mais longe do que qualquer outro tipo de saber. «O que Clarice faz na sua obra é algo que está no limiar entre o literário e o filosófico», diz-nos Carlos Mendes de Sousa. «A sua extraordinária forma de captar o interior, as coisas pequenas…». Perto do Coração Selvagem (1943) é o primeiro romance publicado por Clarice, com o significativo impulso de Lúcio Cardoso e o reconhecimento do famigerado prémio Graça Aranha. Importante amigo de Clarice, que lhe deu não só todo o ímpeto para publicar, como lhe descobriu entre uma epígrafe de James Joyce a expressão certa para o título. «Falava-se então de uma escritora estranha, um pouco alienada, com coisas pouco brasileiras», recorda Carlos Mendes de Sousa. Em 1944, não houve um único mês, em todos os estados brasileiros, que não se falasse de Clarice. Carlos Mendes de Sousa avança, interpelando-nos com uma imagem em que surgem lado a lado Clarice e João Guimarães Rosa. «O facto de eles aparecerem muitas vezes a par não é por acaso. Mudaram o panorama da ficção brasileira contemporânea, no século XX», refere.
Carlos Mendes de Sousa volta às fotografias, com a objetiva posta na cronologia e no núcleo familiar: Clarice com os pais e as irmãs, quer na Roménia (onde fizeram o passaporte que lhes permitiu rumar ao Brasil, a Maceió), quer já no Recife. Refere-se ao seu deliberado nascimento, numa esperança depositada para curar, em nome de uma superstição, a própria mãe. Que não cumpriu. Na hipótese colocada por Benjamin Moser, lembra Carlos Mendes de Sousa, tendo a sua mãe sido violada pelos pogroms, terá contraído sífilis, doença que deveria ser curada com a gestação e o nascimento de um bebé e que esteve na base da “encomenda” de Clarice. Questão central na escrita de Clarice desde as primeiras palavras escritas é não só uma influência latente da relação com a mãe, como o não mimetismo, o desvio ao cânone, que a impediram de publicar os primeiros textos que enviara aos jornais, ainda pequena, ainda no Recife. Não começavam por “Era uma vez…”. Não tinham factos sucessivos. Contrariavam o encadear narrativo convencional. Em 1935, o pai segue com as filhas para o Rio de Janeiro. «Tem um cuidado muito particular com a sua educação, em concreto, dando-lhes aulas de música desde muito cedo», sinaliza Carlos Mendes de Sousa. Clarice entra para Direito em 1938 e ingressa à saída do curso no jornalismo. Vemos, a propósito desse ponto, um retrato de Clarice (única mulher) à mesa de jornalistas. Depois Clarice entrevistando Júlio Dantas, escritor e diplomata português no Brasil. Com Maury Gurgel Valente contrai matrimónio e em 1944 acompanha o marido que inicia carreira diplomática. Belém do Pará, Itália, Suíça e EUA. «Baseei-me toda em escrever», passagem que Carlos Mendes de Sousa recorda de Clarice num passar a pente fino as cartas enviadas pela escritora enquanto fora do Brasil. E a propósito do não estar de Clarice nos diferentes contextos diplomáticos pelos quais passou. «O meio não me interessa. As conversas não me interessam. Os problemas deles não me interessam», escreveu Clarice. Foram sido referidos todos os outros títulos de Clarice, os dois filhos que teve. O regresso ao Rio de Janeiro. O incêndio que a limitou profundamente, com impacto na mão direita, que a levou a passar a escrever, como ela própria dizia, «com a ponta dos dedos». Mas sempre como um mito.
Clarice é mais do que pátria literária. É uma espécie de lugar do destino, filosófico, ontológico. A descoberta de Clarice na nossa vida tem a importância de uma efeméride, de um aniversário redondo, de um marco alcançado. Da mesma forma, registo o dia em que conheci Carlos Mendes de Sousa, seu especialista maior. Levou-me à casa de Clarice.
.