Hoje volto a Lídia Jorge. Depois de, há dias, ter lido O Organista, essa encantadora fábula sobre a criação do Universo e a relação do homem com Deus, fiquei com a curiosidade aguçada para permanecer com Lídia Jorge. A sua escrita foi, para mim, uma das descobertas mais importantes que fiz este ano. Pena ter sido tão tarde. Mas, na verdade, nunca é tarde para descobrir o que é bom. E foi de facto bom continuar a ler esta extraordinária escritora portuguesa, já distinguida com alguns dos prémios mais prestigiantes da literatura nacional e internacional.
Desta vez, li Instruções para Voar, um texto dramatúrgico representado em 2016 no Teatro da Trindade pelos atores Luís Vicente e Elisabete Martins, numa encenação de Juni Dahr, atriz e encenadora da companhia norueguesa Visjoner Teater. Numa resposta positiva a um convite vindo d’A Companhia de Teatro do Algarve, Instruções para Voar retrata as histórias de dois migrantes desconhecidos um do outro, Emil e Laura, que se cruzam numa espécie de não-lugar, ou seja, num lugar de ninguém, os arredores de um aeroporto, onde trocam argumentos acesos e arrebatadores para terem chegado àquele lugar/não-lugar. No horizonte da conversa, mantém-se incólume a figura maternal de cada um como elemento nevrálgico agregador do sentido dramático da narrativa, símbolo dos valores e das referências aparentemente perdidos.
A emigrante, Laura, diz, a determinada altura, que «(…) há um buraco que nos espera». Emil, o imigrante, por seu turno, surge imbuído de histórias e alega sentir-se «(…) Homero para as narrar». É mais otimista, evoca a esperança, afirmando: «A esfera da sorte nunca pára. O que é preciso é estar vivo». Pelo meio, há deambulações sobre a arte e sobre a fé.
Simbolicamente, estamos perante um texto que nos ecoa a necessidade de as camadas mais jovens, já com sólidas formações académicas, terem de emigrar para lá fora encontrarem a sua oportunidade de trabalho. Mesmo correndo o risco de ocupar uma tarefa de trabalho braçal e perante tal facto ficar apagada a sua real formação. Este texto retrata, ao mesmo tempo, a condição de segurança e estabilidade que o país continua ainda assim a representar para muitos imigrantes, sobretudo de alguns dos países dos confins da Europa, que acabam por aqui evidenciar o porto de abrigo para ficar ou, simplesmente, celebrar seu ritual de passagem. Há um momento, pois, em que são dadas instruções para voar…
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