E stive há tempos num lugar, em Leiria, que me encheu de orgulho: Joana Marcelino Studio. É um espaço de arquitetura, mas uma arquitetura de valores. Conheço a sua mentora, Joana Marcelino, há já bastantes anos e por falta de oportunidade adiava uma visita que queria demorada e que só agora consegui realizar. Quis o destino que acontecesse neste 2020 que a todos trouxe uma nova relação com o espaço. É essa proximidade e identificação com o local habitado que Joana Marcelino procura de forma singular, talvez, desde que, na idade escolar, percebeu o que queria ser quando fosse grande: arquiteta. No Joana Marcelino Studio, sentimo-nos em Madrid, Paris ou Nova Iorque. Os seus clientes são do mundo e podem estar a iniciar a vida familiar ou a reestruturar uma casa já abandonada pelos filhos entretanto casados. Para Joana Marcelino, fazer arquitetura é servir as pessoas, é criar os alicerces para um projeto de vida comum, é recriar o ambiente de concretização dos sonhos. À arquitetura, junta arte, design e moda, numa abordagem multidisciplinar. Para a implementação de cada projeto, dinamiza uma rede de parcerias com construtores, artesãos, marceneiros, gráficos, estilistas. Com as próprias mãos, desenha coleções de mármore e cerâmica para marcas de estatuto internacional, como Lovetiles, Pavigrés ou Pedrantiqua. Na Biennale Interieur Kortrijk, na Bélgica, ou no Salone Del MobIle, em Milão, já pudemos ver um espelho por si desenhado a pedido de um editor de design belga. Joana Marcelino é, acima de tudo, uma embaixadora do ser português.
A arquitetura ainda existe? Ou está reduzida à legislação do pé direito e afins?
A arquitetura existe e de forma nenhuma poderá estar reduzida à legislação do pé-direito, a paredes e portas. Arquitetura é arte, arquitetura é futuro, arquitetura é o espaço que respiramos.
Li há tempos uma entrevista realizada na década de 1970 pela escritora Clarice Lispector ao escultor Bruno Giorgi, em que se explora a importância do desenho, sobre o qual o artista lhe diz: «Sempre me preocupei com o desenho e nada realizei sem severo estudo prévio de desenho». Funciona assim contigo, na arquitetura?
O desenho são as perspetivas por mim imaginadas que se concretizam mais tarde, exatamente como as desenhei, quer em obra, numa decoração, numa peça de design ou num arranjo de flores. Sou muito visual e, para mim, tudo se constrói na cabeça através de um desenho, um desenho será sempre o reflexo mais verdadeiro da criatividade. Por isso admiro tanto o trabalho de um artista plástico, por exemplo. Não passa por nenhuma espécie de triagem, sai diretamente da sua essência para a concretização da obra.
O que é mais desafiante? A conciliação entre a utilidade e a estética ou a estética como objetivo único?
A conciliação entre a utilidade e a estética, pois desbravará caminhos e conseguirá resultados finais únicos, com uma identidade muito própria. A estética também estará na utilidade, na prática, no entendimento, sempre!
Se, até à pandemia, quando descrevia a casa, a maioria das pessoas, ficava um pouco atónita a olhar para mim, agora sinto que me compreendem mais do que nunca. Este ano tornou-nos mais conscientes sobre o que somos, como nos movemos e como habitamos.
Olhemos para uma frase que conseguirá sempre expressar-se melhor em inglês: a house is not a home. O que podemos ter apreendido, neste ano absolutamente atípico, sobre o espaço que habitamos?
Ai a casa… a casa sempre foi, é e será, para mim, o tipo de projeto mais incrivelmente desafiante. Se, por um lado, temos a dinâmica da família e a identidade de cada um, por outro lado, temos o lugar e um sem número de variantes, como orçamento, processo burocrático, construtivo. No final, e ultrapassados todos estes obstáculos, tem que ser qualquer coisa como a nossa segunda pele. O que nos envolve, o que nos deixa ser nos próprios, o que nos permite chorar, rir, adormecer, sonhar, acordar. Se, até à pandemia, quando descrevia a casa, a maioria das pessoas, ficava um pouco atónita a olhar para mim, agora sinto que me compreendem mais do que nunca. Este ano tornou-nos mais conscientes sobre o que somos, como nos movemos e como habitamos. Seria irresponsável voltar a olhar para a casa com a mesma descrença. Ouve-se muito: nós somos aquilo de que nos alimentamos, mas do meu ponto de vista também somos muito o reflexo de onde e como vivemos. Já Charles Eames, dizia: «At all times love and discipline have led to a beautiful environment and a good life».
Fotografia: Cortesia de Daniela Vieira.
O Joana Marcelino Studio desenvolve projetos de arquitetura e design de interiores para as áreas residencial, comercial e industrial, centrando-se em qualquer um dos segmentos nas pessoas. Perante as exigências económicas mundiais e os efeitos de uma globalização em crise, ainda é possível refletir o homem e o seu ambiente?
Somos seres em constante mutação, com necessidades a alterar a uma velocidade incrível, somos também seres humanos, que fazemos parte deste querido planeta que se chama Terra e a Terra será sempre a nossa casa. Tenho uma máxima: a primeira pedra de uma construção deve ser uma árvore. Cada vez mais, acho que o projeto deve começar pelo espaço que não é construído, olhando para ele, respeitando-o e recriando um universo em perfeita sintonia. Quando não existe, que possamos aproveitar a oportunidade de construir também com e para a natureza, fifty, fifty. Este será o ambiente natural do homem, onde nos iremos sentir confortáveis, felizes, em paz. O restante vem por acréscimo.
Este projeto Joana Marcelino Studio está enraizado em Leiria, como poderia estar numa qualquer capital cosmopolita do mundo. Houve, da tua parte, uma aposta de empreendedorismo consciente em estreita relação com a cidade? Fala-nos também da janela que, nestas obras recentes ao Studio, abriste para o exterior…
Sempre tive os meus sentidos muito despertos para o que de melhor se faz lá fora, com os pés bem assentes cá dentro. Nasci na rua onde moro, onde trabalho. Valorizo um lugar onde me sinta bem, onde possa ser livre na criação sem muito ruído à volta, onde possa contar com os vários tipos de equipa, artesãos e onde possa por outro lado estar em família, em segurança. Sempre tentei em ser eu própria e acredito piamente que o Joana Marcelino Studio seria o mesmo no centro de Paris, Londres ou NY. O empreendedorismo parte de cada um, da sua essência. Em Leiria, movo montanhas, mas com esperança, que em muito pouco tempo, trilhe apenas caminhos. O studio, a minha casa, está em Leiria, a base do meu trabalho estará sempre cá com os olhos postos lá fora. Recentemente, tive a oportunidade de mudar não só o meu studio, mas o edifício, a sua relação com a cidade. Incrível como habito e trabalho neste espaço desde 2007 e agora com esta remodelação encontro novas perspetivas, uma luz e um movimento que desconhecia existir. Criei o meu mundo cá dentro, mas sinto que também devolvi um pouco dele à cidade. Os alecrins que rodeiam o Studio são exemplo disso mesmo, a fragrância que deixam na rua, em pleno coração da cidade…
Fotografia: Cortesia de Ricardo Pereira da Silva.
A tua visão multidisciplinar – que junta a arquitetura à arte, ao design e à moda – permite-te trabalhar a obra (residencial, comercial ou industrial) de forma holística, certo?
Exato, são áreas complementares, inspiradoras. Existe tanto de arquitetura na moda, existe tanto de arte em ambas. Todas procuram o detalhe, a essência, a unicidade. Em última instância, seremos uma só!
Para além da combinação de diferentes disciplinas, valorizas os elementos especiais e o que eles despertam nos sentidos. Refiro-me, por exemplo, às flores, através das quais lançaste recentemente uma nova abordagem de decoração. Queres comentar?
Ainda há pouco referi a minha admiração pelos artistas plásticos, a forma como constroem a obra com uma autenticidade inigualável sem estar sujeita a algum tipo de restrição ou modelo. Consegui encontrar uma matéria que me dá esse poder: as flores. Através delas consigo complementar, transformar, cuidar, sensibilizar, inspirar, sendo eu própria, com base na experimentação, no entendimento, quer das formas, texturas, fragrâncias, quer pela sua composição. É também algo muito imediato, faz-me feliz e acredito que faz feliz também as pessoas, os espaços.
Fotografia: Cortesia de Sandro Ferreira.
Falaste-me, um dia, de um casal francês que te procurou – tinhas na altura apenas 26 anos – para a remodelação de uma moradia em Toulouse que deveria acompanhar a evolução da família cujos filhos haviam saído de casa para casar. O que é que, do teu ponto de vista, foi decisivo para que te tenham escolhido a ti?
A forma como os ouvi e tentei entender. A compreensão de uma conversa sobre a forma como imaginam a casa ou qualquer outro tipo de espaço, para mim, são as palavras escritas de um livro. Começamos a ler e automaticamente criamos imagens, espaços na nossa cabeça. Só o conseguimos fazer quando estamos verdadeiramente dedicados à leitura, libertos no pensamento. Foi o que fiz com eles e o que continuo a fazer todos os dias.
Fotografia: Cortesia de Ricardo Pereira da Silva.
Tens marcado presença regular em eventos internacionais de arquitetura, como a Milan Design Week. O que levas e trazes desses eventos?
Levo uma ansiedade, curiosidade imensa e uns quantos desenhos debaixo do braço. Levo também muitos sonhos. Trago sempre, essencialmente, o coração cheio, pelo que vi, senti, pela concretização de alguns desafios a que me propus, pelas conversas infindáveis com as pessoas do meio, com as que revejo e com as que conheci e uma inspiração sem fim. Uma curiosidade: em 2017, houve greve dos transportes em Milão, a meio da semana. O metro parou quando estava a caminho da feira. De repente, vi-me sozinha sem grandes meios para ir para onde quer que fosse. Olhei para o lado e comecei a conversar com uma pessoa que estava exatamente na mesma situação que eu. Foi assim que conheci a Alejandra Gandia-Blasco. Nada será tão importante como as relações humanas que criamos.
Há uma arquitetura portuguesa?
Havia uma arquitetura portuguesa, neste momento há um país aberto ao mundo e o mundo a ele, o que me deixa fascinada. A interpretação arquitetónica e a criação que muitos jovens arquitetos portugueses ou estrangeiros têm feito é notável. Abriram-se novos caminhos, novas formas de olhar a arquitetura, o espaço e o lugar, as matérias.
A projeção da parede ou a ausência da mesma pode ser tudo. Para mim, todos os desafios são válidos, quer esteja a trabalhar num detalhe, quer a construir um lugar de grande dimensão.
Projetar uma cidade – como o fez Oscar Niemeyer em Brasília – é a ambição máxima de um arquiteto? Ou a projeção de uma simples parede pode ter lá tudo?
A projeção da parede ou a ausência da mesma pode ser tudo. Para mim, todos os desafios são válidos, quer esteja a trabalhar num detalhe, quer a construir um lugar de grande dimensão. Na base estarão sempre a essência, os valores, o querer fazer bem e melhor, numa perspetiva global e se possível acrescentar algo mais.
Siza Vieira e Souto de Moura projetaram em conjunto, por exemplo, o Serpentine Gallery Pavilion, um espaço de arte contemporânea no centro de Londres. Esta visão colaborativa é um exemplo que merece a tua admiração?
Bom, o Siza Viera e o Souto Moura já fizeram e fazem muitas coisas juntos. Seria pouco sensato da minha parte dizer que não merece a minha admiração, mas seria, ainda menos, dizer que a arquitetura em Portugal deve apenas ser representada apenas por eles. Aguardo por mais oportunidades de ver muitos outros arquitetos, designers, evolvidos em projetos colaborativos e de dimensão, como o espaço Serpentine Gallery Pavilion.
Que cliente te desafiou mais até hoje?
Sinceramente? Talvez uma família para a qual trabalhei há uns anos, que apostou todas as economias na compra de uma vivenda e em mim, no meu trabalho, depois de 20 anos a viver num apartamento muito pequeno com 2 filhos… Confesso que, na primeira reunião para apresentação do projeto, eu estava mais nervosa do que eles! Queria muito corresponder aos seus sonhos e torna-los possíveis. Como poderia não o fazer? Não o concretizar?
Fotografia: Cortesia de Ricardo Pereira da Silva.
És mãe de três filhos. É esse o teu maior edifício? Como defines o papel da (tua) família na construção da casa?
Escrevi um texto em maio de 2019, que transcrevo e ilustro e espero que responda à tua pergunta. Intitulei-o de “Metro quadrado”:
O meu/nosso maior e desafiante projeto. Fizemos as fundações, criamos uma casa estável e equilibrada, desenhamos os interiores. Temos tempestades, mas temos muito mais bom tempo. A meteorologia costuma estar a nosso favor. Estamos orgulhosos do nosso trabalho, ou não fosse o amor que nos move. Esperamos subir em conjunto as escadas da vida, por outras casas que os nossos filhos nos irão mostrar. Esperamos estar cá para ver, para habitar, para amar. Esperamos também que o céu estrelado e que o lindo sol sobre a nossa casa nos proteja…sempre.
Fotografia: Cortesia de Sandro Ferreira.
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