Lisboa está a fervilhar de modernidade. Nestes últimos dias têm estado de portas abertas exposições com parte das obras de Amadeo de Souza-Cardoso (1887-1918) e José de Almada Negreiros (1893-1970). E ambas levando o nosso imaginário até à ousadia de Orpheu. Com uma enorme curiosidade, caí de olhos abertos (quase tão grandes como os de Almada), no Museu Calouste Gulbenkian, para ver José de Almada Negreiros, Uma maneira de ser moderno, logo na antestreia. O nome da exposição é humilde, porque evoca “uma maneira”. Mas Almada é tão plural, que parece abarcar a modernidade total.
Esta exposição de Almada é uma verdadeira antologia, com mais de 400 obras mostrando o artista completíssimo nas suas vertentes múltiplas de pintor, ilustrador, performer, escritor, cenógrafo, ator, humorista/caricaturista. E, por isso, é também uma visão da modernidade na sua totalidade. É, ainda, um retrato das peças mais relevantes que marcaram a arte portuguesa do século XX. Com curadoria da historiadora de arte Mariana Pinto dos Santos, em colaboração com a conservadora do Museu Calouste Gulbenkian Ana Vasconcelos, ocupa as duas salas temporárias do edifício sede da Fundação e, através de oito núcleos temáticos, vai revelando com peças dispostas sem nenhuma obediência cronológica várias sensibilidades da modernidade. Retratando, até, muitos dos trabalhos em que Almada integrava outros artistas, num sentido de equipa verdadeiramente magnânimo e de capacidade de integração de competências multidisciplinares.
Poderá ser falta de memória escolar (porque não fui contemporânea do autor), ou mesmo ignorância, mas a verdade é que não tinha a perceção de quão pleno Almada foi como artista, fazendo lembrar a versatilidade enciclopédica do Renascimento ou a globalidade cultural de intelectuais de outros tempos. E, se um Amadeo de Souza-Cardoso estava enquadrado num agregado familiar com condições socioeconómicas favoráveis, Almada fez-se à estrada, trabalhou muito para garantir seu ganha-pão. Foi mesmo conotado, não raras vezes, com alinhamento favorável ao regime, porque as prescrições artísticas de Oliveira Salazar terão sido em vários pontos do país cumpridas pelo artista. Os painéis das Gares Marítima de Alcântara e da Rocha do Conde de Óbidos ilustram alguns dos trabalhos que fez para o Estado Novo. Mas Almada provou uma inteira distância face à norma estabelecida e uma liberdade total para fazer exatamente o que lhe corria na criatividade. Porque, afinal, o que Almada fazia era servir o país. A sua visão estava acima de qualquer ideologia…
Isto de ser moderno é como ser elegante: não é uma maneira de vestir mas sim uma maneira de ser. Ser moderno não é fazer a caligrafia moderna, é ser o legítimo descobridor da novidade.
Deixou-me siderada o quadro Retrato de Fernando Pessoa (1954) que o antigo ponto de encontro do grupo de Orpheu, o restaurante Irmãos Unidos, no Rossio, encomendou a Almada, desencadeando por parte da Fundação Calouste Gulbenkian um novo pedido na década de 1960, para o mesmo quadro. Gostei muito mais deste último. É um verdadeiro rasgo de luz, enorme, grandioso, cheio de movimento (embora retrate Pessoa estático, sentado a uma mesa de café).
Também boquiaberta fiquei com os inúmeros auto-retratos de Almada. Amiúde, vamos vendo na exposição o retrato de Almada, umas vezes, caricaturado, outras apenas fazendo jus aos seus traços já bastante pronunciados e grandes, no nariz e sobretudo nos olhos. Com olhos de gigante, Almada apregoava para o olhar a importância do sentido preponderante, mais global, mais capaz. No livro A Invenção do Dia Claro (1921), Almada escreveu: «Reparem bem nos meus olhos, não são meus, são os olhos do nosso século! Os olhos que furam para detrás de tudo». E é isso mesmo. Nas pessoas mais carismáticas que conhecemos, vamos encontrando esse olhar que não parece seu, mas do mundo, que parece abarcar muito mais do que a própria vida, também a vida dos outros, a responsabilidade de um país, da própria História. E é isso que acontece com Almada. É isso que o seu olhar sugere.
Almada multiplicou-se como artista através de uma também multiplicidade de linguagens, mostrando que ser moderno é antes de mais ser autêntico, original, excluindo qualquer hipótese de importar modelos ou figurinos. Na conferência O Desenho, ocorrida em Madrid em 1927, Almada disse: «Isto de ser moderno é como ser elegante: não é uma maneira de vestir mas sim uma maneira de ser. Ser moderno não é fazer a caligrafia moderna, é ser o legítimo descobridor da novidade“. Com estas palavras, Almada assumia uma posição de totalidade, atribuindo ao artista a importância de estar por inteiro nas coisas, na vida, no dia a dia. Daí que para Mário de Sá-Carneiro, Almada fizesse «escândalo».
Almada, e isso fica patentíssimo na exposição, pensou e desconstruiu – e deixou a todos os portugueses o legado desse pensamento e dessa desconstrução – o moderno como o novo, mas também como a nova forma de olhar para o antigo. É um saber olhar para o futuro, com o background do passado. E saber olhar para o passado com o olhar passado a limpo.
Por isso os seus olhos eram tão grandes.
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