M adeirense, nascido em Porto Santo, em 1948. José Velosa é professor catedrático jubilado da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. Exerce a sua atividade profissional no Hospital Lusíadas Lisboa e soma ao longo do tempo várias funções de gestão hospitalar, desde logo no serviço de Gastrenterologia e Hepatologia do Centro Hospitalar Lisboa Norte, EPE, que liderou durante 10 anos. Tem vindo, ainda, a deixar marca forte no campo da investigação. É, atualmente, o presidente da Associação para Investigação e Desenvolvimento da Faculdade de Medicina (AIDFM) e, como investigador, tem centrado o seu foco essencialmente no estudo da hepatite vírica e do carcinoma hepatocelular. Foi reconhecido com vários prémios, assina dezenas de trabalhos em publicações de relevo, nacionais e internacionais, e é o autor do livro que nos ligou: Conversas com o Fígado, em cuja leitura descobrimos um médico especialista de larguíssima experiência, um homem com saberes enciclopédicos e multidisciplinares e um ser humano com uma sensibilidade para a relação com o outro sentida a olhos vistos. E que é um gosto escutar, encantado, a falar dessa arte tão antiga como a Humanidade, a Medicina.
Começo por lhe perguntar qual é o seu propósito no exercício da profissão médica?
Pergunta difícil! A resposta clássica é “ajudar as pessoas”. Acredito que em muitos casos esse possa ser o motivo da escolha da profissão médica – uma espécie de vocação. Encarei sempre a Medicina como um desafio; o desafio de conhecer as pessoas e as doenças, como diagnosticá-las e como tratá-las. Passei pela angústia de olhar para os tratados de Patologia e perceber que nunca conseguiria memorizar tudo o que continham – conhecer todas as doenças – porque, então, entendia que para ser competente era necessário saber tudo. Vã ilusão! Esse desafio, longe de ser vencido ainda aumentou nos dias de hoje – a genética ampliou exponencialmente o leque de doenças. Contudo, o repto mantém-se e esse é o fio condutor que orienta o clínico. O outro, é o prazer de partilhar o conhecimento, transmitir aos outros aquilo que sabemos, ou julgamos saber.
Uma das queixas mais frequentes dos doentes é que o médico não lhes deu tempo para explicarem as suas queixas. Muitos doentes têm uma interpretação para os seus sintomas que pode ser útil o médico conhecer, porque na realidade uma história clínica bem colhida corresponde a uma parte substancial do diagnóstico.
Como define a relevância do fígado?
Sem o fígado não há vida! E quando está doente, a vida pode estar comprometida a curto prazo. O fígado é o órgão central do metabolismo, isto é, produz todas as proteínas do nosso organismo. Desde logo, a conhecida albumina; mas também todas as proteínas da coagulação do sangue. Sem elas esvaímo-nos em sangue; mas também sintetiza as proteínas que controlam a coagulação, sob pena do sangue transformar-se em coágulos no interior dos vasos sanguíneos. O fígado é o reservatório das vitaminas e do glicogénio, a fonte energética do nosso organismo. A sua importância não fica por aqui: tem um papel relevante na defesa contra os agressores externos, por intermédio da sua riqueza em células imunitárias (um terço das células do sistema imunológico está sediada no fígado); e, por outro lado, na destoxificação – o fígado é a “estação de tratamento de resíduos” do corpo humano. Como glândula que também é, o fígado exerce um papel importante na absorção das gorduras, pois essa é a função da bílis segregada pelas células hepáticas e armazenada na vesícula.
«Deixe o doente falar porque ele lhe dirá o diagnóstico» é um aforismo a que se refere. Para isso, fará toda a diferença a empatia… Quer comentar?
Uma das queixas mais frequentes dos doentes é que o médico não lhes deu tempo para explicarem as suas queixas. Muitos doentes têm uma interpretação para os seus sintomas que pode ser útil o médico conhecer, porque na realidade uma história clínica bem colhida corresponde a uma parte substancial do diagnóstico. É útil deixar os doentes falar sem interrompê-los; ainda que, por vezes, seja necessário orientar o discurso ou colocar uma questão pertinente; ou, mesmo, moderar um doente mais prolixo. É nesta fase que se conquista a confiança do doente e se criam os laços de cumplicidade e compreensão – a empatia. O tópico do “médico simpático” é muito valorizado por os doentes, mas, pergunto, o que será melhor: simpático ou competente? A simpatia do médico passa muito pela sua capacidade de ouvir e compreender. É muito importante! Mas sem competência, não se vai a lado nenhum… O que poucos doentes sabem é que no primeiro contacto, o médico já tomou nota de muitos pormenores, tanto mais significativos quanto mais convivência tiver com o doente. O relato das suas queixas quase sempre permite formular um diagnóstico, mesmo que provisório. A este propósito, ocorre-me um almoço numa reunião médica, quando um renomado médico inglês ao discutir a duração que deve ter uma consulta, afirmava, à laia de desafio, para outro colega: basta cinco minutos para uma consulta, depois desse tempo é só paleio! É evidente que se trata de uma blague… Presentemente, todos se queixam – doentes e médicos –, da deterioração da relação médico-doente protagonizada pelos computadores; mas essa é uma luta que parece perdida…
Quantas vezes, uma biopsia desmente o que parecia ser uma certeza numa história sugestiva!
O diagnóstico parece continuar a ser a parte mais estimulante para o médico. Alguma vez algum diagnóstico o surpreendeu? Ou seja, a realidade pode ser efetivamente mais ampla do que aquilo que se aprendeu e a experiência que se ganhou?
Sim, a realidade ultrapassa a teoria! O diagnóstico é o epílogo de uma cadeia de acontecimentos: histórica clínica e exames, sendo estes de variada índole: laboratoriais, de imagem, endoscópicos, histológicos, etc. Diz-se que uma anamnese bem colhida representa 80% do diagnóstico, mas a prática está a mudar – cada vez mais, sobretudo por falta de tempo, o diagnóstico é procurado nos exames. Quantas vezes, uma biopsia desmente o que parecia ser uma certeza numa história sugestiva! Lembro-me de um caso surpreendente, que nós – médicos –, sabemos que existe, mas que julgamos não acontecer connosco. Uma doente foi internada com uma diarreia crónica. Trata-se de uma situação aparentemente banal; contudo a investigação da diarreia crónica é melindrosa e nem sempre conclusiva. Depois de múltiplos exames, o diagnóstico era um mistério; até que alguém se lembrou que poderia ser a síndrome de Munchausen. E era mesmo: uma simulação, com a tomada intencional de laxantes! A propósito do diagnóstico ocorre-me a frase de Clarice Lispector, em a Hora da Estrela: «Sei de muita coisa que não vi». Acrescentaria: …não vi e não ouvi… mas li! O conhecimento livresco é um pilar da sabedoria e no momento do diagnóstico nem sempre a experiência é suficiente!
E para nos situarmos agora no tratamento: podemos ter esperança sobre a cura da cirrose hepática (hoje ainda inexistente)?
Será o Graal da Hepatologia. O futuro dirá se a remoção da fibrose (tecido cicatricial) é suficiente para readquirir a função hepática. Julgo que não, porque as alterações da estrutura, nomeadamente da vascularização, serão difíceis, senão impossíveis, de emendar! A esperança radica no transplante de células estaminais.
A publicação das Conversas com o Fígado consiste num contributo para a literacia médica e é a «crónica de um órgão», para o citar. É assim que apresenta o livro que lançou recentemente?
O livro nasceu da necessidade que senti, a dado momento – mais precisamente quando estava a escrever um livro de hepatologia para médicos (Hepatologia Clínica) –, que os doentes e familiares eram, também, merecedores de uma obra que os elucidasse sobre o fígado: na doença e na saúde. Um complemento à consulta médica. Talvez “crónica” não seja o termo mais adequado. Porque não é um texto curto e conciso. Será crónica na medida em que trata de assuntos banais, do dia a dia das pessoas, que é útil saberem, especialmente se estão doentes ou sadias. São assuntos recorrentes num consultório que, por falta de tempo ou oportunidade, não são abordados ou desenvolvidos. Procurei fugir à escrita científica, o que nem sempre consegui, de modo que optei por um estilo descritivo, em três partes, tantas quantas enforma um processo clínico: anamnese, diagnóstico e tratamento.
Está familiarizado com a escrita científica. Na escrita do livro, porém, com outro perfil, quais os desafios que enfrentou na busca de uma linguagem mais acessível à comunidade não médica? Porque este livro é para todos nós…
É muito difícil fazer a translação da linguagem científica para a escrita comum. Mais ainda, transformar a oralidade em escrita. Um subterfúgio foi usar casos clínicos exemplares, as designadas vinhetas, que estão dispersas pelo livro. Reconhecendo, no entanto, que faz parte da literacia médica aproximar o leitor da linguagem técnica – torná-la compreensível.
O fígado ocupava na Antiguidade um lugar central na Mitologia. A consulta do fígado de um animal, em particular do carneiro, à laia de oráculo, provavelmente terá decidido os destinos da História em muitas ocasiões.
Faz, no livro, o retrato do fígado à luz da literatura, da música, da poesia, da pintura. É a natureza deste órgão que o coloca numa posição de competição com o coração e, desse ponto de vista, apetecível às narrativas artísticas?
Objetivamente, o imaginário do fígado é anterior ao coração. Jugo que a ode de Pablo Neruda sobre o fígado – um hino a um órgão, com um rigor científico e uma beleza arcaica que seria difícil imaginar num poeta que 24 horas antes de a escrever pouco ou nada sabia sobre o órgão – responde cabalmente a essa questão. O fígado ocupava na Antiguidade um lugar central na Mitologia. A consulta do fígado de um animal, em particular do carneiro, à laia de oráculo, provavelmente terá decidido os destinos da História em muitas ocasiões. O Antigo Testamento relata o episódio do profeta Ezequiel que numa encruzilhada e indeciso sobre o caminho a tomar, consulta o fígado. Por fim, o mito de Prometeu com a águia a bicar o fígado e este sempre a regenerar aponta para o castigo eterno – a alma não morre! Até a descoberta da circulação cardiovascular, no século XVII, o fígado era o órgão dos sentimentos – o repositório da alma. Para Shakespeare, o fígado leitoso era próprio dos cobardes, da mesma maneira que o capitão Ahab quando arremetia contra Moby Dick podia ter todos os defeitos do mundo menos um fígado branco.
O gosto pela leitura foi anterior à decisão de ser médico, mas nunca me passou pela cabeça que poderia optar por uma profissão ligada às Humanidades. Para esta é necessária vocação… enquanto a Medicina aprende-se!
No seu livro, assistimos a esse saber enciclopédico. A propósito das Conversas com o Fígado, vai mapeando conhecimentos, revelando uma cultura, eu diria, renascentista. Falo com um médico apaixonado pela cultura e as artes em geral ou com um homem de cultura que se tornou médico?
Não, longe de mim enveredar pelo terreno movediço da cultura… Não foi esse o objetivo do livro. Trata-se apenas de um médico que, imbuído no gosto de ensinar, tem prazer em partilhar conhecimentos e que sente já não ter audiência. Só lhe resta a escrita!… Procurei estar à altura de um órgão que durante séculos foi considerado a sede da alma, onde se cria que se condensavam todos os sentimentos. Nesse sentido, Conversas com o Fígado pode ser considerado um livro culto: porque abarca muitos saberes. Será isso cultura? Não sei! Porque é muito difícil definir um indivíduo culto… Talvez fosse por esse motivo que preocupei apresentar o Leonardo da Vinci cozinheiro… O gosto pela leitura foi anterior à decisão de ser médico, mas nunca me passou pela cabeça que poderia optar por uma profissão ligada às Humanidades. Para esta é necessária vocação… enquanto a Medicina aprende-se! Tinha, e tenho, muito respeito e admiração pelos escritores e artistas; ao ponto de me interessar sobremaneira pelos escritores médicos e pelo ponto de vista médico dos letrados não médicos. Procurei afincadamente a opinião de escritores médicos.
Aborda também a mudança de paradigma da medicina hospitalar do médico especialista único para o da equipa de médicos multidisciplinar, centrada no doente. Já vivemos efetivamente este novo padrão, no privado e no público?
Sim, a prática médica, na perspetiva clínica, transformou-se num trabalho de equipa. O médico isolado no seu gabinete já não resolve todos os problemas; há muito que deixou de ser omnisciente e omnipotente. Na Medicina multidisciplinar, quem ocupa o centro é o doente e não o médico. Esta prática está difundida e não é propriedade de nenhum setor, ainda que exija instituições amplas, diversificadas e bem equipadas. O encontro de saberes e experiências tende a ser mais florescente no público, onde se encontram as instituições académicas. O doente oncológico é, porventura, o melhor exemplo onde a medicina multidisciplinar é exercida com excelentes resultados.
A licenciatura em medicina continua a deixar muitos jovens à porta. Da sua enorme experiência, que comentários lhe merece esta fasquia (demasiado alta)?
Não há dúvida que é necessária uma seleção porque o número de candidatos é excessivo: para a capacidade formativa e para as necessidades do país. Começando pela última asserção, o número de médicos por habitante em Portugal é elevado e só justificado pelo sistema de saúde português, baseado na especialização. Ao contrário do sistema inglês, que procurámos copiar quando já estava em decadência, no nosso país existe um “consumo” muito elevado de Medicina especializada que se repercute na prática da Medicina e na estrutura dos nossos hospitais – públicos e privados. O que se pode inferir do que foi dito é que não existe carência de médicos em Portugal, antes a necessidade urgente em integrar os vários sistemas: público, privado e social. Existe a sensação em alguns setores que a aparente inação do poder constituído tem como finalidade a autorregulação do sistema. O que levará o seu tempo… e deixará no percurso muitos destroços! Como é óbvio a capacidade formativa é suficiente para as necessidades do país. Mais oferta geraria excedentes, que ficariam no desemprego ou teriam de emigrar. Uma política formativa sem limites é seguida por alguns países europeus com as consequências que se conhecem: exportação de médicos!
O ensino médico é muito mais do que a mera aprendizagem das doenças e do seu tratamento. Comporta, também, o ensino de um conjunto de “regras” que são interiorizadas, sobretudo pelo exemplo e pela vivência com os seus pares.
Para terminar, do seu ponto de vista, um médico é um ser humano em permanente missão. É assim que (se) vê?
O espírito de missão não se ensina – aprende-se! Durante a aprendizagem, a par da arte ocorre uma transformação de personalidade do jovem estudante que se mantém e se desenvolve ao longo da vida, mesmo que a atitude e o temperamento à partida fossem susceptíveis de crítica. Salvo raríssimas excepções, os valores de dedicação, dignidade e altruísmo, que enformam a profissão médica, desenvolvem-se e entranham-se definitivamente. O ensino médico é muito mais do que a mera aprendizagem das doenças e do seu tratamento. Comporta, também, o ensino de um conjunto de “regras” que são interiorizadas, sobretudo pelo exemplo e pela vivência com os seus pares: “saber estar” e respeitar o doente nos seus valores culturais, éticos e religiosos, são preceitos básicos que se aprendem e que se praticam durante toda a vida. Apreciar esta moldagem ao longo do curso e depois na vida ativa é, para um docente, uma das realizações mais notáveis.
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