Lídia Jorge

Nasceu em 1946, em Boliqueime, no Algarve da ruralidade evidente. Esteve em África, nos últimos cinco anos da Guerra Colonial, o que ditou que assistisse a atos de violência inolvidáveis e transponíveis para uma escrita livre, consciente, madura. Lídia Jorge já mereceu alguns dos prémios mais prestigiados que a literatura dá, é lida em mais de 20 línguas e convidada para intervir nos mais importantes eventos literários do mundo. À infância vai buscar no seu discurso mais intimista o pai e o avô, que partiram para África quando tinha apenas três anos. Na Universidade de Lisboa, onde estudou Filologia Românica, identifica personalidades que lhe modelaram o pensamento, como Lindley Cintra ou o poeta Tomás Quim. No seu pensamento, precisamente, lê-se uma imensa paixão pelos livros e a vontade de criar, com as próprias mãos (num rasgo quase oficinal), algo de belo a acrescentar ao mundo. É escritora incontornável em Portugal e não há domínio da cena literária portuguesa que a exclua. O seu nome é obrigatório. «Sempre que me virem a fazer outra coisa, pensem que não estou a ser inteira. Gosto de escrever», diz. E o que diz sobre a vida ajuda-nos a melhor conhecer a sua obra e, com isso, a primordial visão do mundo que aprimoramos sempre que afortunadamente nos cruzamos, como o é Lídia Jorge, com um escritor essencial. Esse analista de como o mundo vai. De como vamos. Do que somos. (Foto de destaque de Lídia Jorge com créditos para Alfredo Cunha) Lídia Jorge

Eduardo Lourenço referiu-se a si como «a algarvia universal». Uma das explicações para o sucesso da sua obra parece estar neste equilíbrio quase perfeito entre as origens e a universalidade. É assim?

Acho graça a essa expressão com que me confronto desde que o Eduardo Lourenço a disse e alguém a escreveu. Mas nem sei bem como responder. De facto sempre me senti muito próxima do Algarve, uma espécie de sentimento de pertença essencial a que me refiro com naturalidade e verdade. Gosto muito desta terra, tenho honra em aqui ter nascido e pertencer-lhe. Mas não lhe pertenço por inteiro porque ninguém pertence a um só lugar. Somos sempre de muitos lugares, e eu gosto de conhecer a Terra. Acho que escrevo com essa dupla condição. Já se alcanço a harmonia no que escrevo, e se a essa dupla condição o devo, é mais complicado de avaliar. Espero que alguém o diga por mim, se eu merecer a atenção suficiente para se ocuparem da minha pessoa.

A sua memória mais antiga descreve um episódio em que a sua mãe a leva a ver o nevoeiro. Este é o seu momento poético inaugural?

Sim, foi um momento inaugural. A minha mãe levou-me ao colo para ver o nevoeiro que cercava a casa. As árvores surgiam na brancura do nevoeiro como silhuetas desenhadas, lembro-me dessas imagens fantásticas, era um novo mundo para os meus olhos, mas eu não tinha nem os conceitos nem as palavras para traduzir a experiência. Na verdade a minha mãe atravessou a propriedade da nossa casa para o lado de lá, porque ainda não tinha sido construído o muro, e por isso eu sei que foi numa fase muito recuada da minha vida. Talvez entre os dois e os três anos. Associo essa imagem a um mergulho no mistério no meio do qual a minha mãe me colocou para sempre.  

O seu pai e o seu avô partiram para África numa viagem inaugurada no comboio que passava em Boliqueime, à meia-noite. Tinha 3 anos de idade. Que marca guarda desta partida? O que é que esta perda lhe acrescentou?

Essa é outra imagem fundadora da minha vida. Todos as temos, embora uns as deixem mais no subterrâneo da lembrança e outros as tragam à superfície. Essa noite marcou um afastamento que se traduziu numa perda. A imagem de um comboio que parte levando os que amamos, e desaparece no escuro da noite, marca uma pessoa para sempre. Certa vez perguntaram à Pina Bausch porque dançava e ela respondeu que o fazia porque sentia saudade. Saudade em alemão diz-se sehnsucht. Talvez eu tivesse começado a escrever tão cedo porque sentia sehnsucht, saudade. Um sentimento que nasce de um passado que se projecta no futuro, como se houvesse uma distância que se quer ultrapassar.

África é um território de ligação de nós, portugueses, connosco mesmos. África não é um continente ausente, é um lugar de ficção das nossas vidas que se situa aos pés da nossa cama. Portugal é um país rodeado de África.

Recusou um convite para assistente na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, porque não queria analisar obras, queria escrevê-las. Demorou 10 anos a concretizar esse sonho, com a publicação de O Dia dos Prodígios (1980). Não perdeu o norte nesses 10 anos?

Sim, perdi muitas vezes o norte. Dez anos são muitos anos, muitas peripécias, muitos factos que poderiam ter-me divorciado da escrita. Mas não foi assim. Eu não ia publicando, nem sabia como isso se fazia, mas ia escrevendo sem desistir. A invenção dava-me felicidade. Escrevia porque correspondia a uma actividade essencial.

Como interpreta, à data de hoje, o momento em que Vergílio Ferreira a chama para falarem desse primeiro romance?

O Vergílio Ferreira gostou do original de O Dia dos Prodígios que a sua mulher, a Regina Kasprykowsky, lhe levou para ler, e chamou-me a sua casa. Na altura creio que não medi bem o que estava a acontecer. Fiquei estupefacta, mas não percebia o alcance daquele gesto. Ele fez-me sentar diante de si e começou a falar do livro, com muito entusiasmo. Perguntou-me que escritores eu tinha lido, e eu queria dizer que o tinha lido a ele, e mencioná-lo em primeiro lugar, mas não sabia se o deveria fazer. Então enumerei nomes como os de Agustina Bessa-Luís e José Cardoso Pires e não fui capaz de pronunciar o seu nome. Acho que aquele foi o meu momento de adopção pelos meus pares que, naquela tarde, o Vergílio interpretou sozinho e em primeiro lugar.

Lídia Jorge

No seu livro de contos O Amor em Lobito Bay (2016), parece consagrar-se uma espécie de reconciliação com a África que a tirou do sério n’O Dia dos Prodígios? É assim?

Trata-se de uma ligação nova, nunca tinha pensado no assunto. A África de O Dia dos Prodígios era um local de massacre, referia-se ao conflito interminável que matava gente de um lado e de outro. Carminha, a rapariguinha dessa história, primeiro tinha tido por namorado um soldado que seria morto em combate. Depois ficou noiva de um outro militar regressado de África, que era um brutamontes violento. Esses são os ecos da África colonial nesse livro. Essa seria também a África de A Costa dos Murmúrios. Mas, vendo bem, eu nunca mais abandonei o tema. Por isso O Amor em Lobito Bay resulta de um continuum. África é um território de ligação de nós, portugueses, connosco mesmos. África não é um continente ausente, é um lugar de ficção das nossas vidas que se situa aos pés da nossa cama. Portugal é um país rodeado de África.

Lídia Jorge

No seu diálogo com José Jorge Letria, A Literatura é o Prolongamento da Infância (2016), refere: «A literatura mantém-nos diante da vida com o olhar da criança, o olhar do regenerador, aquele que acredita que existe uma salvação». É esta a premissa do seu livro mais recente, Estuário (2018)? A dignidade e, até, a salvação, na e apesar da perda?  

Os escritores evitam dizer que a Literatura traz consigo esse lado de salvação porque ninguém pretende mais ser romântico, e essa atitude, a de atribuir uma imagem regeneradora da Arte, inscreve-se no código do Romantismo. Aliás, sabemos bem que o poder da Literatura não passa de um poder fático. É descontínuo, impreciso, não imediato, não visível nem mensurável. Um soft power, muito, muito soft. E no entanto, porque é um espaço eminentemente estético, é salvador. Porque a beleza limpa, consola e faz renascer. Não vale a pena falarmos disso. É preciso apenas deixar isso agir. Eu acredito que a bondade e a paz são províncias da beleza e não o seu contrário.

Edmundo Galeano, o protagonista de Estuário, é uma metáfora cabal para a fase que a humanidade atravessa?

Espero que sim, que o seja. E que tenha esse poder quando escrever, para além da última página de Estuário, o seu livro imaginado. Mesmo que o não escreva, se a Humidade fosse feita de crentes na beleza, como ele, sem dúvida que viveríamos melhor à face da Terra.

Lídia Jorge

Com uma carreira literária consolidada, reconhecida e respeitada dentro e fora de portas, poder-se-á hoje sentir como Emil, em Instruções para Voar (2016), imbuído de histórias e preparado como «(…) Homero para as narrar»?

Tenho mil histórias para narrar. Para além da minha vida, irão ficar histórias intermináveis suspensas da escrita. Uma história é sempre um universo completo, o que não quer dizer que seja perfeito. É um universo. Gosto muito de imaginar que Homero não escreveu a Ilíada e a Odisseia, mas que sim, que gravou histórias que vinham sendo contadas. Que se trata, pois, de longos poemas colectivos. Talvez nós estejamos a escrever páginas de epopeias colectivas. Todos nós, os que escrevem e publicam. Sou um entre esses. Compreendendo isso, estou preparada para apenas deixar uma página dessa obra colectiva. Mas não estou preparada para não deixar nenhuma.

No seu testemunho, há a crónica, a alucinação e a fantasia. É a forma de ter um pé na terra e outro a voar? No presente e no futuro?

A crónica é filha do deus Cronos, o malvado que nos ata ao tempo que corre, mas também aos espaços sólidos, precisos e determinados. Eu sinto a necessidade da referência a um local geográfico concreto e a um calendário preciso. Costumo dizer que me sinto uma cronista do tempo que passa. Mas o resto não cabe nesses sítios fixos. A Arte e a Literatura são espaços de saída do fluxo do Cronos e da geografia. Os livros permitem criar vidas que permanecem depois das nossas vidas desaparecerem. Homero desapareceu na poeira da lenda, há milhares de anos, mas Aquiles continua cada vez mais vivo, sobretudo nos dias que correm. Posso sonhar, por exemplo, que Milene de O Vento Assobiando nas Gruas se manterá viva daqui a duzentos anos. Trezentos, quatrocentos. Seria uma boa partida.

Os maiores desafios de sempre continuarão a ser culturais, e de entre os culturais, os mais radicais de todos, os filosóficos. Porque a pergunta essencial não é para que servimos, como todos os dias nos perguntam. É que sentido tem a nossa vida sobre a Terra.

N’O Organista (2014), sua fábula sobre a criação do Universo, ganhamos a evidência de que apesar de todos os avanços tecnológicos e científicos, há um sentido essencial – de onde vimos e para onde vamos – que continua em aberto. Os maiores desafios da contemporaneidade continuarão a ser culturais, certo?

Os maiores desafios de sempre continuarão a ser culturais, e de entre os culturais, os mais radicais de todos, os filosóficos. Porque a pergunta essencial não é para que servimos, como todos os dias nos perguntam. É que sentido tem a nossa vida sobre a Terra. E aí a questão da grande paternidade, que é a figura de Deus, surge sempre no horizonte. O debate que hoje existe em relação ao poder da Inteligência Artificial tem exactamente a ver com isso: o receio de que saiamos fora do universo dual Criador-Criatura. Podemos passar para um estádio de Criatura-Criatura. Se vingar esse binómio, e os robots nos ultrapassarem, estaremos perante uma outra Humanidade. A discussão é apaixonante, mas o futuro nesse aspecto transforma-se numa incógnita. A questão do sentido da vida humana vai estar na ordem do dia, cada vez mais. A Literatura e as Artes irão dar a sua resposta, não tenho dúvida. No cinema, 2001 – Odisseia no Espaço, abriu essa questão que nunca mais será fechada.

Lídia Jorge

Um escritor está em permanente auscultação, em constante interrogação. Lídia Jorge: qual é a sua pergunta essencial?

A minha pergunta essencial é a anterior.

Lídia Jorge

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