Espécie de ensaio em crise de identidade (dado que alterna com traços de autobiografia e, até, de romance), este livro é uma verdadeira obra de arte. Faz um levantamento das características mais íntimas da imaginação (a verdadeira louca da casa) e da memória, levando o autor a viajar por entre as dúvidas e os medos mais sombrios dos escritores, os quais, não raras vezes, são exatamente as dúvidas e os medos de qualquer um de nós.
A madrilena que se estabilizou como jornalista no El País, formada em Jornalismo e Psicologia e galardoada com o Prémio Nacional de Jornalismo, parte sempre das idiossincrasias do escritor – afinal tão comuns a todos os homens – para definir a nossa identidade que se constrói e reconstrói a partir da influência da memória, da imaginação e dos sonhos.
Em tom crítico, defende que o processo de socialização, ao qual estão estreitamente ligados o amadurecimento e a educação, consiste em anular fantasias incidentes dos sonhos e do delírio, fantasias essas a que os escritores e as crianças com a sua natureza pura estão autorizados. Mas só eles. E daí o alerta que faz para a importância de mantermos bem vivas dentro de nós as crianças que um dia fomos. «Tornamo-nos velhos por fora, mas também por dentro; e deve ser por isso que os leitores, à medida que crescem, vão deixando maioritariamente de ser leitores de romances e derivam para outros géneros mais instalados no realismo notarial, a biografia, a história, o ensaio.» E deixa um aviso: «Convém não crescer demasiado».
No seu estilo acutilante, Rosa Montero retrata também a angústia do sucesso e a forma como ele decorre do olhar arbitrário dos outros e a sua vontade de atribuir ou não sucesso. Uma vez encarados desse modo aleatório como bem-sucedidos, os homens tendem a entrar numa espiral de desejo de que essa luz – totalmente dependente dos outros – permaneça, transformando-se em autênticos seres dependentes e frágeis. O que Rosa Montero diz, sobretudo, é que o sucesso nos dias de hoje está menos relacionado com a glória do que com a fama: (…) e a fama é a versão mais barata, instável e artificial do triunfo», remata.
Com um entusiasmo arrepiante, a escritora estabelece um paralelismo entre o romance e a realidade: ambos são incompletos, desastrados e paradoxais. O romance é o género literário que Rosa Montero diz melhor ajustar-se «à matéria fraturada da vida». «A poesia aspira à perfeição; o ensaio, à exatidão; o drama, à ordem estrutural. O romance é o único território literário onde reina a mesma imprecisão e desmesura que na existência humana.» Mas, embora com a mesma ossatura, na linha de Vargas Llosa, lembra que o romance tem a capacidade de estruturar e organizar o caos da vida, salvando-a. Com uma boa dose de loucura.
Rosa Montero, no seu íntimo, desejaria permanecer no estádio de loucura e imaginação indomesticada das crianças, antes de serem ensinadas e adaptadas às normas específicas da cultura e da sociedade onde se inserem. Ganhar a sensatez e o crescimento do adulto implica perder o olhar caleidoscópico sobre a enorme dimensão da vida e passar a ver a vida mais pequena do que ela efetivamente é. Numa analogia a Adão e Eva, a escritora madrilena ousa dizer algo simplesmente encantador e soberano: «O que perdemos ao perder o paraíso foi a capacidade de contemplar essa enormidade sem nos destruirmos». Daí as regras (que pena!).
.