É uma voz de comando. Professor e investigador de comunicação na Universidade Católica Portuguesa (UCP) e no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, Luís Loureiro incorpora praticamente todas as variantes da comunicação. É autor de um estudo científico sobre a fidelização dos ouvintes de rádio que originou a sua tese de doutoramento em Ciências da Comunicação. É responsável pelo desenvolvimento de programas de formação e projetos de comunicação, marketing e soft skills. Na comunicação social, assumiu funções no grupo Renascença, tendo sido Diretor de Programas da RFM, Diretor Adjunto da Rádio Renascença e locutor/realizador das várias rádios do grupo. Foi colaborador da RTP, da TVI e de diferentes jornais e revistas. Em 1998, fundou a FUN Comunicação e Eventos, agência especializada em eventos corporativos, assumindo até hoje a sua gestão. No próximo dia 18 de setembro, arranca na UCP a Formação Avançada em Alta Performance em Técnicas de Comunicação Oral, com a sua coordenação. Neste tempo novo em que experimentamos um inusitado regresso à palavra falada, Luís Loureiro fala-nos da importância do dizer e do falar no processo de comunicação. E de como o falar é tanto do que se é. [Como tive o privilégio de ser sua aluna, ganhei créditos para lhe fazer as perguntas.]
Começo por citar Luís Loureiro: «A transição de hábitos de conversação telefónica para os de produção massiva de mensagens escritas fez supor, precipitadamente, uma crescente desvalorização da importância da expressão oral no processo comunicativo». Neste contexto de pandemia, porém, assistimos a um regresso à palavra oral, ainda que intermediada pelas telecomunicações e os media Que importância devemos atribuir a este novo foco na palavra falada?
Na realidade, não é um regresso. Temos andado é muito distraídos… Falar é algo tão natural que habitualmente não questionamos a sua importância relativa. Recentemente, com o que temos estado a viver, fomos convidados a reflectir sobre tudo o que nos rodeia. E ao abusarmos dos “Zooms” desta vida, tomámos consciência da verdadeira importância da “velhinha” expressão oral. Faz-me lembrar quando, ao fim de alguns anos a divertirem-se com brinquedos tecnologicamente avançados, as crianças ficam fascinadas quando descobrem que se divertem muito mais com um velho pião ou um carrinho de rolamentos do tempo dos avós. Os factores determinantes para comunicar bem nestas plataformas virtuais existem desde sempre, são o som e as habilidades discursivas. Não são os magapixels das câmeras de vídeo nem os divertimentos com o formato da imagem dos participantes.
Andamos inebriados com a vertente texto-visual dos nossos “electrodomésticos” de comunicação. O mercado seduz-nos com funcionalidades de mensagens escritas que fazem tudo e “até saltam à corda” ou com ecrãs que são tão perfeitos e nítidos que, após uma selfie, corremos o risco de ter de marcar esteticista. Mas no contexto da comunicação, o verdadeiro salto tecnológico da última década não está relacionado com texto nem imagem. A verdadeira revolução surgiu com as tecnologias de reconhecimento de voz. Os últimos dez anos transformaram radicalmente a oferta integrada destas aplicações, com o lançamento do Siri pela Apple, em 2010. Google, Microsoft, Amazon, Alibaba, Samsung são alguns dos gigantes mundiais que desenvolveram extraordinariamente os assistentes de voz e estão gradualmente a mudar a forma como interagimos na sociedade. Ao mesmo tempo, os automóveis, o televisor, as portas, o aspirador, os telefones, obedecem cada vez mais à nossa voz de comando. No entanto, só colaboram se pronunciarmos as palavras de forma correcta, ou seja, “se soubermos falar”. Afinal, num mundo aparentemente tão visual, a palavra falada é “tudo muito mais”.
A forma intensa como D. José [Tolentino Mendonça] se relaciona com a poesia revela que não se conforma com os limites da linguagem, ele próprio diz que «o poema dá a ouvir o inaudível», à imagem da conversa interior que nos apazigua em tempos de alvoroço.
José Tolentino Mendonça tem repetido, nas suas intervenções mais recentes, que este novo tempo recriou de facto as condições para um regresso à palavra, mas não à «palavra banal». Este voltar à oralidade pressupõe uma tomada de consciência, certo?
A «palavra banal» a que se refere entendo-a como a palavra que não produz efeito construtivo, conciliador, solidário, que não persegue horizontes. A palavra que não acrescenta, antes, subtrai. Creio que a encontramos mais na forma escrita com o acesso livre e desregulado às plataformas social media, onde a humanidade encontrou palco para ser tudo e nada. É um lugar onde com muitas palavras se pode escrever o vazio ou onde, por vezes, os silêncios escondem dores a que não conseguimos acudir.
A forma intensa como D. José [Tolentino Mendonça] se relaciona com a poesia revela que não se conforma com os limites da linguagem, ele próprio diz que «o poema dá a ouvir o inaudível», à imagem da conversa interior que nos apazigua em tempos de alvoroço. A palavra permite a profundidade. A oração, a meditação, a reflexão, sempre nos foram sugeridas em torno da palavra e em contexto de silêncio. Mesmo quando a palavra não tem som e é imaginada. Basta que os sentidos não se dispersem.
Há uma excelente versão em português da obra de Aristóteles, editada pela Imprensa Nacional Casa da Moeda, que releio com frequência. E onde se pode ler (passo a citar): «Quando se diz que a retórica é a arte de falar bem, faz-se na consciência de que, para falar bem é necessário pensar bem e de que o pensar bem pressupõe, não só ter ideias e tê-las lógica e esteticamente arrumadas, mas também um estilo de vida, um viver em conformidade com o que se crê».
Desde a Antiguidade grega, na pólis ou na Academia de Platão, a comunicação oral é entendida como uma forma de fazer política (na sua aceção mais ampla), persuadir os outros de ideias próprias, estabelecer pontes, criar consensos, convencer nuns pontos, ceder noutros. Falamos de uma arma poderosa, quer seja usada para o bem, quer para o mal. Estarão as lideranças – quer na política, quer no universo organizacional e corporativo, quer ainda no campo da cidadania – cientes de que com a palavra faz-se a paz e faz-se a guerra?
O convívio social que levou o homem a inventar a palavra e a frase produziu também a conversa ou conversação. Os gregos chamaram-lhe homilía, os romanos, sermonis (sermão). São povos que estariam, mais tarde, na origem da retórica e da oratória. Na democracia inventada pelos gregos, os cidadãos reuniam-se nas ruas para participarem nas discussões que culminavam em deliberações sobre os assuntos da urbe. E logo se percebeu que os oradores de verbo fácil, que se expressavam mais adequadamente, quer pela forma, quer pelo conteúdo, dominavam a situação, tornavam-se admirados pelas multidões e galgavam os melhores postos na comunidade. Não demorou para que toda a gente procurasse obter os segredos desta nova arte, falar em público tornou-se a coqueluche grega. Foi com naturalidade que surgiu a Retórica. Platão ainda alertou que esta nova expressão devia estar ao serviço da verdade. (Não sei se alguém o ouviu…) Não fosse Aristóteles tê-la feito ressurgir dimensionando-a à luz da sua estrutura e da sua função filosófica e ainda estaríamos hoje a debater os receios de Sócrates quanto à proliferação de políticos imorais popularizados à custa de uma retórica sem escrúpulos. Tudo isto é tão assustadoramente actual que nos convida a encontrar similitudes.
A Retórica – arte de falar bem – e a Oratória – arte de falar em público – complementam-se, sendo que a primeira engloba os princípios de persuasão enunciados por Aristóteles que a tornam menos técnica e mais comportamental. É curioso observar que ambas estão na origem de todos os modelos desenvolvidos até hoje no domínio da comunicação oral, partindo da arte para a ciência. Há uma excelente versão em português da obra de Aristóteles, editada pela Imprensa Nacional Casa da Moeda, que releio com frequência. E onde se pode ler (passo a citar): «Quando se diz que a retórica é a arte de falar bem, faz-se na consciência de que, para falar bem é necessário pensar bem e de que o pensar bem pressupõe, não só ter ideias e tê-las lógica e esteticamente arrumadas, mas também um estilo de vida, um viver em conformidade com o que se crê». Entendo-a como uma lição que sobrevive à erosão do tempo. O líder relevante, antes de saber falar bem, deve saber pensar bem e, sobretudo, ser humanamente bem-intencionado.
A expressão pela voz traduz um “dar o corpo às balas”, estar lá, expor o pensamento ao mesmo tempo que se mostra, até, a forma como se respira… A comunicação através da voz pode ser entendida, à luz das ciências da comunicação, como um veículo de humanização, valorização e identificação com o outro?
É uma pergunta curiosa porque as disputas discursivas que se travam nas redes sociais através de mensagens e comentários têm sido estudadas e as conclusões têm-se revelado surpreendentes. Há casos em que as opiniões críticas ou divergentes não teriam surgido se os interlocutores estivessem “face a face”. A dimensão da comunicação não-verbal, a presença do “outro” e a obrigatoriedade de falar e se expor, inibe e condiciona o emissor das mensagens. Tomando estas conclusões como certas, reforça-se a ideia de que na oralidade presencial há uma dimensão íntima e privada que tem um peso e uma força que a escrita anónima não consegue igualar. Por isso, no sentido contrário, quando o objectivo é prestar auxílio, apoio, colaboração, solidariedade, encontramos na voz e na palavra veículos mais adequados para uma comunicação eficaz, de proximidade, de afecto. Nas palavras de Quintiliano: “É o coração que faz a eloquência. Partem do coração os grandes discursos”.
A velha rádio e os novos meios sonoros são os únicos que não exigem o nosso olhar na direcção de um ecrã.
Qualquer aprendizagem sobre como comunicar bem pressupõe o conhecimento da audiência, do público com o qual se fala diretamente. Que especificidades ou desafios impõem os públicos de quem comunica através da oralidade?
Procurar conhecer o público. Na expectativa que se constitua audiência, que receba, que interaja. É o primeiro passo para uma comunicação eficaz. Podemos começar a aprendizagem namorando uma das ideias-chave do marketing, a de procurar satisfazer as necessidades dos consumidores. Estes são aqueles a quem nos dirigimos, sejam muitos ou poucos, num contexto presencial ou virtual. Conhecer o público-alvo é aquilo que dá sentido à nossa estratégia. É uma tarefa complexa e desafiante mas que é muito facilitada pelo estudo de modelos e padrões e pela capacidade de interpretar, em cada momento, a realidade social.
As diferentes profissões que têm na voz um importante instrumento de trabalho exigem o domínio de técnicas vocais, as quais, por sua vez, pressupõem um saber representar. A voz também é um papel que se assume?
A voz tem, essencialmente, uma dimensão física, propagando-se através de várias ciências e saberes para domínios onde existe simbolicamente. Nas questões da oralidade e das habilidades discursivas, é trabalhada numa vertente técnica que procura torná-la fisicamente adequada para viabilizar o processo de comunicação. As técnicas vocais procuram actuar sobre a mobilidade mecânica do aparelho fonador na sua capacidade de reproduzir a língua, e, numa fase avançada, permitir a utilização de recursos prosódicos. São estes que dão intencionalidade, cor, impacto, sensibilidade ao discurso. A entoação, o timbre e o ritmo são os mais conhecidos mas todos são fundamentais para criar uma forte relação de envolvimento do orador com o seu público.
A audição desenvolve-se muito antes da visão ou dos outros sentidos. Escutamos o mundo antes de o poder ver ou tactear. A natureza invisível, misteriosa e íntima do som fomenta a imaginação, a construção de significados que, por vezes, a imagem vulgariza.
Guardo na memória, de uma das nossas aulas, a aprendizagem de que a rádio descreve e a televisão narra. Porque estou a falar também com um profissional de rádio, pergunto que vantagem tem o som em relação à imagem?
A primeira vantagem é pouparmos dinheiro no oftalmologista, a segunda é que a rádio é fantástica (smiles). Como nasci na rádio não lhe poupo o elogio, mas serve de bom exemplo. A velha rádio e os novos meios sonoros são os únicos que não exigem o nosso olhar na direcção de um ecrã. E permitem capitalizar as vantagens do conceito “invisible radio”. Podemos fazer o que quisermos enquanto nos dedicamos à escuta. Os seres humanos são cognitivamente competentes a ouvir. A audição desenvolve-se muito antes da visão ou dos outros sentidos. Escutamos o mundo antes de o poder ver ou tactear. A natureza invisível, misteriosa e íntima do som fomenta a imaginação, a construção de significados que, por vezes, a imagem vulgariza. Recordando Alfred Tomatis, «o ouvido é um dínamo que permite ao cérebro estar sempre carregado de potencial eléctrico».
Para terminar (e para reflexão): o que devemos dizer em vez de escrever?
Os “Não” da nossa vida. Olhos nos olhos.
+ Informação Formação Avançada em Alta Performance em Técnicas de Comunicação Oral
.