Este pedido dirigido à mãe, uma espécie de grito implorando uma leitura, uma atenção, um olhar, um colo, é um «promete-me que lês» ou um promete que me lês, que me conheces melhor, que me segues e estás, apesar de já não estares. Depois do seu primeiro romance, A Queda de Um Homem, ou de um livro provocação, Amor, ou ainda de uma biografia de Jorge Jardim Gonçalves, Luís Osório, hoje deliberadamente mais escritor e menos jornalista, estabelece um monólogo dialogado com a mãe, num exercício autêntico de exteriorização da interioridade.
Como Franz Kafka, na sua Carta ao Pai, Luís Osório não deixa ninguém indiferente, num apelo à mãe, aparentemente, impreparada para a vinda de um bebé: Miguel, de olhos azuis e traço aristocrático, como o tio António, ironicamente o «mais provinciano da família». «Éramos felizes naquela casa de bonecas e formigas. Muito mais fácil o mundo quando nos parecia caber numa mão». A partir desta aparente pequenez, o autor dá-nos o mundo. E permite-nos um contacto com a complexidade do ser humano, das relações familiares, da narrativa da vida, nesse entrecruzar frenético entre a realidade e a ficção, a ficção e a realidade. Mostrando-nos quão ténue é a linha entre uma e outra. Mesmo depois de ficarmos adultos. «Cada vez estou mais certo de que crescer não é ficarmos grandes. Crescer é ficarmos mais pequenos do que anões». Num lucro de lucidez sobre a escala do mundo. Luís Osório é mercurial. Intenso.
Miguel dirige-se à mãe numa permanente interpelação daquilo que pode ter sido a sua vida, já ida. As suas dificuldades materiais, a sua depressão, o seu talento, a sua voz, a sua doença, a sua solidão. Recupera as conversas entre uma mãe e um filho a rebentar de curiosidade intelectual. «Lembras-te de quando meti na cabeça que tinha de ler o essencial da literatura russa?» E aprendeu efetivamente com Anna Karenina que a diferenciação das famílias se mede pelos abismos e fatalidades, não pela forma de ser feliz, que não tem quaisquer especificidades. A apologia de Liev Tolstói ganha particular sentido de oportunidade, sobretudo porque «(…) a realidade nunca foi para nós tão simples como para a maioria», diz-nos o Miguel. Mesmo quando aos 14 anos recebeu da mãe uns Adidas Patrick Sjöberg. Ou, precisamente, por isso. Tinha sete anos quando foi à cama com uma febre reumática que o levou a pensar na morte, em tempo de cromos e aventuras pueris. Já estava a validar-se um fio condutor a contraciclo, que parece permanecer na vida do jovem que, perante as enciclopédias que também recebera da mãe, percebeu que tinha condições para compreender o mundo e evitar dispersar-se com o basquetebol. Nessa compreensão do mundo, vinha materializada uma motivação para contrariar os impossíveis, herdada da mãe.
Sobre o pai, o autor fala-nos sempre a propósito de um link à mãe. «Pareceu-me sempre o teu calcanhar de Aquiles», diz numa menção à homossexualidade do pai. O cerne da conversa é colocado na mãe. Sempre. E nas contrariedades de uma vida imbuída de provações. A partir do lugar pequeno onde parecia caber tudo e já com a dimensão das oscilações alojadas em Campo de Ourique, onde viviam, nesse «compromisso entre dois mundos, o da burguesia que florescia até à Ferreira Borges e o da gente humilde ou miserável que descia até ao Casal Ventoso». Numa mancha paralela à Paris dos anos 70, com cafés frequentados por Sartre ou Beauvoir, por onde a mãe e o pai andaram. E o fizeram. «Escrever esta carta é como regressar à infância, às entranhas». Com alíneas antes e depois da partida da mãe. A mãe que quis enfrentar o futuro, com o Tarot Egípcio, que leu ao próprio filho e a outros, nesse caso para ganhar a vida. Mas é fora das cartas que Miguel recupera a realidade. Os casamentos com a Zé, com a Joana, com a Ana. E os filhos, os três filhos, todos rapazes. As idiossincrasias e vicissitudes nos vários relacionamentos. A complexidade encontrada permanentemente e o desejo de que tudo se componha, numa visível necessidade de arrumação e de encontro com o essencial.
Daí a epístola marcadamente umbilical, de sistematização e consolidação da vida por inteiro. Exatamente como ela é. Naquele exato começo em que existe a mãe e o que vem antes dela, numa urgência cimentada de caracterizar com o legado do passado aquilo que é hoje e o que será depois. Este livro é uma interpelação a partir da voz da criança que permanece no Miguel, aliás, no Luís, e que nos reposiciona a todos no nosso próprio lugar de origem e na importância de o reconhecer. «As crianças são maravilhosas por serem feitas de futuro», diz-nos o autor.
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