M Miguel Lambertini. Um nome que fica no ouvido. No meu, estava há já uns bons anos. Fomos colegas de turma na Universidade Católica, num tempo a meio caminho entre o analógico e o digital. Com mais tempo dentro do tempo. Fizemos parte de uma boa fornada de alunos, com energia e um futuro auspicioso, com várias opções, e fiáveis, num mercado de trabalho então bastante agregador. Dessa fase da faculdade, ironicamente, tenho do Miguel a memória de um tipo sério. Passados uns anos, cruzámo-nos em ambiente corporativo e ele confidenciou-me que não era aquele o seu caminho, sem detalhar. Mais tarde, começo a ver repetidamente o seu nome nos palcos humorísticos. Aí percebi o tamanho do seu desabafo. Ele tinha uma vocação maior. Miguel Lambertini é hoje um dos humoristas mais promissores. Mantém, como numa linha de malabarista, a capacidade rara de, através do humor, dar nas vistas e ser discreto. Tem rubricas na televisão, na rádio, na imprensa e no digital. Com formação em teatro e música, faz stand up comedy nos cenários mais diversificados e já animou os eventos corporativos das marcas mais sérias e credíveis. É um comediante que pode subir alto. Tem 1,92m de altura e acredita que, com trabalho, chegará aos 2.   


Quão a sério te levas a rir? Ou um humorista não ri?

É verdade que os humoristas são, em regra, um “público difícil”. O que se passa é que muitas vezes, por conhecermos alguns truques ou ferramentas para a construção das piadas, não somos tão facilmente surpreendidos. Isto acontece-me principalmente quando é um artista que gosto particularmente. Passo o tempo todo a tentar desconstruir a forma como foi criada esta ou aquela piada, a entoação que foi dada ou a postura corporal. Depois tenho de ir ver outra vez, com olhos de mero fã, para desfrutar completamente da atuação. Mas não só não me levo nada a sério como acho que esse é até o segredo para desfrutarmos da vida sem enlouquecermos. Nesta profissão, isso torna-se ainda mais premente porque frequentemente somos expostos ao ridículo.  O que levo muito a sério é o desafio de fazer rir as pessoas e isso é o que me motiva diariamente. Sempre o fiz de forma instintiva, a única diferença agora é que me pagam por isso, o que é bastante simpático.

O riso serve para aliviar o medo e é ao mesmo tempo uma prova de superioridade, por isso é que nos sentimos tão bem quando rimos. Dá-nos uma falsa sensação de superioridade sobre as falhas dos outros (que muitas vezes são também as nossas).

O riso é retratado desde os poemas homéricos, dentro daquela dualidade que tantas vezes compõe as nossas vidas: tragédia/comédia. Continuam a ser estes os territórios privilegiados do humorista?

Há de facto algo de perversamente divertido na tragédia, no mal. Quando digo tragédia, refiro-me a uma situação em que somos confrontados com a fragilidade do ser humano. Todos nós já nos rimos quando assistimos a uma queda de alguém. É uma reação quase inadvertida. Dizem os cientistas que é o nosso instinto animal em funcionamento. Há milhares de anos, quando a luta pela sobrevivência dependia da caça, aquele que caísse ou fosse mais frágil estava condenado. Quando vemos alguém a cair, rimos porque cá dentro há uma instrução genética que nos diz que acabámos de evitar a morte e eu adoro esse pensamento. O de que fazer rir as pessoas é de certo modo, nem que por uns segundos, uma forma de escaparmos a um destino inevitável. O riso serve para aliviar o medo e é ao mesmo tempo uma prova de superioridade, por isso é que nos sentimos tão bem quando rimos. Dá-nos uma falsa sensação de superioridade sobre as falhas dos outros (que muitas vezes são também as nossas).

Trabalhaste 12 anos em marketing e comunicação. Quando é que efetivamente se dá, na tua cabeça, a mudança? Foi um grito do Ipiranga? Ou uma evolução natural de alguém que estava convicto sobre a sua vocação?

Sempre soube que a minha vida passaria pelo humor e pela representação, porque desde cedo percebi que fazer rir as pessoas à minha volta era das coisas que mais prazer me dava. Como nunca fui um aluno brilhante, nem nunca soube dar toques numa bola de futebol, o humor ajudou-me sempre a sentir-me integrado. Não me lembro muito bem da primeira vez que subi a um palco, mas sei que tinha 5 ou 6 anos. Foi numa peça de teatro do colégio, que se chamava o “Menino do Algodão Doce”, eu era esse menino que ia comprar algodão doce (um enredo extremamente complexo, como se vê) e lembro-me da sensação de perceber na reação dos outros que aquilo era algo que eu fazia bem. Entre esse primeiro momento e a tomada de decisão oficial, passaram demasiados anos, até que um dia cheguei a casa e disse à minha mulher que ia despedir-me para ser ator e comediante. Até hoje não me arrependo e o mais incrível é que continuo casado, por isso acho mesmo que valeu a pena.

Essa experiência profissional deixou-te algum legado importante para o que hoje és e fazes? Como é que te sentes quando animas eventos de empresas? É o outro lado da barricada?

Sim, talvez tenha alguma sensibilidade adicional pelo facto de ter trabalhado vários anos em ambiente corporativo e conhecer as dinâmicas do mundo do trabalho. Felizmente tenho tido, desde o início, a oportunidade de colaborar com grandes marcas e empresas, quer seja com a animação dos seus eventos corporativos, quer seja com a criação de conteúdos de teor humorístico, como vídeos de comunicação interna ou de publicidade institucional. Sinto que muitas vezes há um mindset comum que me permite ir ao encontro daquilo que os responsáveis de marketing ou recursos humanos mais valorizam e que provavelmente advém dessa minha experiência anterior. Divirto-me imenso a animar eventos corporativos, porque normalmente as pessoas estão ávidas de um pouco de animação para descontrair e o retorno é muito positivo. Inclusivamente, já o fiz em empresas nas quais fui colaborador, o que me dá uma satisfação especial, porque recebem-me sempre de braços abertos.

A única fronteira que tento sempre não ultrapassar é fazer humor à custa de estereótipos, preconceitos ou discriminação.

A principal matéria-prima das tuas sessões de stand up comedy está na TV. Falo, concretamente, de programas de TV geradores de grande audiência. Não te metes tanto com a política, por exemplo. Como defines as tuas fronteiras?

Eu sou grande fã de televisão, de ver e de fazer, por isso é muito natural escolher esse meio como um dos meus temas para criação de material de comédia, para além de que é uma área em constante renovação e muito fértil. É um privilégio poder ter uma profissão que, entre outras coisas, passa por me sentar no sofá a beber uma cerveja e ficar a ver televisão. Para qualquer outra pessoa, isto é apenas ser calão, para mim é trabalho. Nos textos que escrevo para a revista NiT, em concreto, sobre os principais reality shows, tenho a vantagem de serem formatos vistos por milhões de pessoas, o que gera um potencial de alcance enorme. Também faço alguma sátira política no ‘Alto e Falante’, a minha rubrica semanal que é emitida na rádio NiT FM e nas estações do Metro de Lisboa, por isso tendo a não me limitar, à partida, nos temas que abordo. O que procuro essencialmente é que seja um tópico atual, pertinente e um bom contributo para divertir o meu público. A única fronteira que tento sempre não ultrapassar é fazer humor à custa de estereótipos, preconceitos ou discriminação. Tudo o resto para mim é válido, desde que eu ache piada e acredite que outros também acharão.

Em Portugal, sempre tivemos essa tradição desde os tempos de Gil Vicente em que as personagens tipo espelhavam a sociedade. O humor utiliza o exagero para nos confrontar com o que somos e é essa distorção, essa caricatura que simultaneamente nos dá o devido afastamento e nos faz sentir confortáveis a rir de nós próprios.

Albert Camus dizia que a «imaginação oferece às pessoas consolação por aquilo que não podem ser e o humor por aquilo que efetivamente são». Do teu ponto de vista, nós, portugueses, constituímos uma boa audiência para o humor? Sabemos ou não rir-nos de nós próprios?

Acho que somos tão boa audiência como qualquer outro país. Um sinal de maturidade dos povos e das democracias é precisamente a capacidade que têm de ser autocríticos e de rir com as suas próprias fragilidades. Em Portugal, sempre tivemos essa tradição desde os tempos de Gil Vicente em que as personagens tipo espelhavam a sociedade. O humor utiliza o exagero para nos confrontar com o que somos e é essa distorção, essa caricatura que simultaneamente nos dá o devido afastamento e nos faz sentir confortáveis a rir de nós próprios. Quando vemos um comediante apontar determinado comportamento, dizemos para nós próprios “é mesmo assim, o meu namorado é tal e qual”. Na verdade não é, aquilo é um exagero, uma ampliação da realidade, mas basta isso para nos fazer baixar as defesas e – lá está – para nos dar alguma consolação e admissão das nossas imperfeições.

Do teu ponto de vista, esta conjuntura absolutamente excecional que vivemos constitui um fator de desaceleração do humor ou, pelo contrário, é ainda mais crítico que saibamos rir?

Esta pandemia tem sido um incentivo incrível para todos os artistas e criadores, não só para os humoristas. Mas o humor tem de facto tido algum destaque nestes tempos mais sombrios, desde logo porque as pessoas precisam de um escape para se abstrair e desanuviar um pouco. Acho que nunca tinha recebido tantos vídeos e memes no WhatsApp como os que recebi durante o período de confinamento, inclusivamente das pessoas mais improváveis, como os meus pais, que antes disto tudo só usavam o telemóvel para fazer chamadas e agora estão uns verdadeiros gurus do digital. O humor é um ótimo contrapeso para os momentos de angústia e ajuda a relativizar. Não tem o poder de mudar as circunstâncias mas tem o dom de as tornar um pouco menos penosas e isso é, só por si, uma função bastante nobre e importante. Por isso, usando um já batido provérbio, rir é mesmo o melhor remédio, pelo menos enquanto não houver vacina para a COVID-19.

O Herman é e será sempre o mestre do humor, para mais do que uma geração, e não só é um ídolo para mim como uma fonte inesgotável de talento, inspiração e com quem frequentemente aprendo algo novo.

Assumes presença regular na TV, na rádio e no digital. A diferença dos públicos obriga, certamente, a uma adaptação e adequação do discurso. Como trabalhas essa plasticidade?

Nos canais digitais faço um esforço para perceber que tipos de conteúdo funcionam melhor, porque há coisas que resultam muito bem no Facebook mas no Instagram podem já não resultar tão bem, ou vice-versa. No caso do stand up, o próprio formato permite uma liberdade para uma abordagem menos contida (à exceção dos eventos corporativos, claro) que não existe, por exemplo, em TV, rádio ou imprensa. Ainda assim, a matriz acaba por manter-se independentemente do canal e o meu público também: maioritariamente jovens adultos entre os 25 e os 45 anos e senhoras a partir dos 65 anos que são muito ativas na minha página de Facebook, as quais eu prezo muitíssimo e para quem aproveito para enviar um grande beijinho.

Desde a Ilíada e a Odisseia, as cantigas de escárnio e maldizer, passando por Bordalo Pinheiro, Raul Solnado, Herman José, Mr. Bean ou Ricardo Araújo Pereira e Bruno Nogueira, na atualidade (para lançar nomes para o ar)… Quais são as tuas principais referências? Qual é a tua escola?

Há dois artistas maiores que influenciaram a minha formação desde muito cedo. Um deles é o Jerry Lewis, que é um dos melhores comediantes americanos e cujos filmes já eu devorava ainda mesmo antes de saber ler as legendas. Em simultâneo, o Herman José, parece um lugar comum que todos os humoristas nacionais referem, mas é inevitável. O Herman é e será sempre o mestre do humor, para mais do que uma geração, e não só é um ídolo para mim como uma fonte inesgotável de talento, inspiração e com quem frequentemente aprendo algo novo. Mais tarde, fui descobrindo outros extraordinários artistas com quem me identifico, como o Mel Brooks, o Rowan Atkinson, o Peter Sellers, o Eric Idle (dos Monty Phyton) ou o Robin Williams. Da geração atual, sou fã, entre outros, do Conan O’Brien, da Sarah Silverman, do Bill Burr, da Tatá Werneck e, claro, do Ricardo Araújo Pereira, que não só é o maior como é também ex-aluno da Católica, o que, como todos sabemos, lhe atribui automaticamente o estatuto de pessoa de grande categoria.

Rir, rio-me com as mais diversas situações, mas sou especialmente permeável às incongruências e às vulnerabilidades do ser humano – e, aqui, voltamos ao início – a tudo aquilo que está aparentemente escondido ou invisível e que o olhar do humorista consegue apontar e, distorcendo-o, torná-lo aprazível.

O que é que te faz rir?

Não é uma pergunta de resposta linear. Se me perguntasses o que me faz chorar, respondia de caras, filmes com crianças ou animais em situações de aflição. É tiro e queda, desmancho-me logo. Rir, rio-me com as mais diversas situações, mas sou especialmente permeável às incongruências e às vulnerabilidades do ser humano – e, aqui, voltamos ao início – a tudo aquilo que está aparentemente escondido ou invisível e que o olhar do humorista consegue apontar e, distorcendo-o, torná-lo aprazível. Gosto de virar o mundo ao contrário e descobrir o que está do outro lado. Se calhar foi por isso que decidi fazer o que faço, um género de batota para não enfrentar tudo o que é adverso. No fundo é só um estratagema para passar pela vida sem me chatear. Isso, às vezes, dá-me vontade de rir.



 + Informação Miguel Lambertini

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