É um ser humano extraordinário, dono de uma alegria contagiante e, ao mesmo tempo, de uma serenidade inquebrantável. Atento observador da beleza da vida, das coisas profundamente simples e, tantas vezes, as maiores. Monsenhor Vítor Feytor Pinto nasceu a 6 de março de 1932, em Santo António dos Olivais, uma freguesia do concelho de Coimbra. Seis meses depois, seguiu em resultado de uma importante decisão familiar para Castelo Branco, cidade onde os pais fundaram um colégio: o Instituto de Santo António. Regressou a Coimbra quando a irmã mais velha ingressou na Universidade. Aos 10 anos, formulou pela primeira vez a vontade de ser padre e, com essa idade, entrou no Seminário do Fundão. Aos 23 anos, foi ordenado padre na Guarda, em cuja Diocese permaneceu ao longo de 9 anos. Entretanto, pela mão do padre Vieira Pinto, seguiu para Roma, onde assistiu aos últimos desenvolvimentos do Concílio Vaticano II (1962-1965), momento histórico que o marcou determinantemente. Mestre em Bioética e licenciado em Teologia Sistemática, foi agraciado com o título de Monsenhor pelo Papa Bento XVI. Homem de pontes entre religiões, ideologias políticas, hierarquias e condições socioeconómicas, não diz que não a ninguém. Na Igreja do Campo Grande, onde é o pároco, cativa semanalmente pessoas de todas as idades, vindas de todos os lados. É conhecido pelas homilias encantadoras e por tão bem enquadrar a mensagem bíblica na atualidade. Com um sorriso sempre presente, recorda que o amor é o mandamento mais forte que a Igreja tem no futuro. E o futuro começa agora, neste Advento, em que Monsenhor Vítor Feytor Pinto tão generosamente aceitou estar Entre Vistas.
Começo por uma frase que sei que lhe diz algo, do músico Pedro Abrunhosa: «Vamos fazer o que ainda não foi feito». Depois de quase 60 anos de vida sacerdotal, o que gostaria de fazer ainda?
Quando dizemos que de facto há muita coisa por fazer, estamos numa linha de criatividade. Portanto, o que vai acontecendo desafia-nos a nós podermos responder cada vez melhor àquilo que efetivamente nos é pedido. Neste momento, por exemplo, está a decorrer um Sínodo dos Bispos que foca o tema da família. Eu gostaria de poder encontrar solução para todas as famílias que estão preocupadas por quererem ser cristãs a sério e terem pequenos limites jurídicos que podem ser ultrapassados. Gostaria de poder intervir nesta área. Por outro lado, como há muitas pessoas com idade avançada em situação de solidão, penso que podem ser criadas iniciativas para acompanhar essas pessoas. Eu sei que aqui na minha comunidade existem 900 pessoas que vivem isoladas em casa. Gostaria de ter voluntários suficientes para na nossa organização respondermos a todos esses casos. E por aí adiante. Há muita coisa que está ainda por fazer. É na linha de uma criatividade perante os problemas que nos vão surgindo que nós depois concretizamos os sonhos que fomos tendo. Para mim, o grande sonho é que toda a gente seja feliz. Se eu puder contribuir para isso, será ótimo.
Como evoluiu, ao longo destes anos, a sua relação com Deus?
Num crescendo permanente, logicamente, de grande compromisso. Uma coisa é nós acreditarmos em Deus quando temos 4, 5 ou 6 anos. Trata-se de uma revelação de ternura. Depois começamos a estudar e, a certa altura, pomos em questão que tipo de fé é a nossa, que tipo de sociedade é aquela em que vivemos. A nossa fé depende de três circunstâncias: do nosso ADN/genoma (portanto, do que são o nosso pai e a nossa mãe), do ambiente em que crescemos e vivemos e, ainda, das situações de acaso. Eu tenho um pai e uma mãe cristãos. O meu pai mais ainda do que a minha mãe. Por outro lado, vivi num ambiente de família, de comunidades cristãs muito intensas. Mas faltava-me o chamado toque. Tive então dois ou três acontecimentos na minha vida que influenciaram decisivamente a minha opção pelo sacerdócio. Primeiro, o facto de acompanhar o meu pai todos os sábados a visitar pobres das Conferências de São Vicente de Paulo. Este foi um toque muito importante. Um outro toque dá-se pela influência de dois tios meus que eram padres e que me pediam para ir com eles aqui, ali e acolá. E até os apoiava na liturgia. Portanto, ainda miúdo, com 10 anos, quis ir para o seminário. Os meus pais tinham um colégio, onde eu podia ter seguido os estudos até entrar na universidade e eu não quis. Disse: «Não, não. Eu quero é entrar já no seminário». E entrei no Seminário do Fundão com 10 anos.
Como é possível ter essa vocação tão cedo? Com apenas 10 anos de idade? Que reações gerou na família?
Sei que me aconteceu. O meu pai ficou feliz. A minha mãe disse: «Não, primeiro cresces, tiras um curso e, depois, pensas nisso». A minha mãe tinha uma fé muito pequenina, estava ainda a crescer. O meu pai, com uma fé muito convicta, conseguiu convencer a minha mãe a deixar-me ir e a vir-me embora quando quisesse. É dentro dessa perspetiva que foi possível esta vocação. E depois fui aprofundando, sempre. Entretanto ordenei-me…
Com 23 anos…
Sim, com 23 anos. E é normal que, sendo eu uma pessoa com cabeça, tenha continuado sempre a interrogar-me. Questionava muita coisa que tinha estudado em Teologia, em Bíblia. E tive a sorte de, nove anos depois de ser padre, ter tido possibilidade de ir para Roma, cidade em que o meu espírito se abriu completamente, num universo totalmente novo. Até porque naquela altura estava a decorrer o Concílio [Vaticano II]. Foi um tempo fantástico… Fiquei com uma visão, na perspetiva da minha relação com Deus e da minha relação com os outros, profundamente nova. A minha relação com Deus tem vindo a ser alvo, assim, de um contínuo crescimento. O que não implica que não tenha dúvidas. As dúvidas são aliás normais nos espíritos suficientemente inteligentes. A Teresa de Ávila dizia que durante 50 anos teve sempre dúvidas, dificuldades. Qualquer um de nós tem. É normal. Isso não empobrece a minha relação com Deus, mas obriga-me a enriquecê-la. Porque, de facto, perante a dúvida vamos à procura, tentar descobrir as soluções, sabendo que a fé não é fruto da evidência, mas dos afetos. A nossa relação com Deus é no campo da afetividade. Não no campo da evidência. Porque eu não posso, por evidência, dizer: «Deus está aqui, ali ou acolá». Portanto, nós seguimos a vertente da afetividade. E isso vai crescendo, consoante nos sentimos mais realizados na opção de vida que fizemos à luz do projeto de Deus. Um projeto de comunhão.
Se eu não tiver objetivos para além da minha vida profissional para ganhar dinheiro, sou um pobre de Cristo. Não vou a parte nenhuma, não tenho sonho, não tenho poesia.
A fé é um dom de Deus. Nessa medida, escolhe idades? Ou seja, há uma idade melhor ou pior para a fé aparecer na nossa vida?
Não. Repare, o agnóstico, por definição, é aquele que está sempre à procura. Ainda não tem fé, mas é suficientemente inteligente para continuar a procurar. O ateu, não. O ateu pôs esse problema de parte. O ateu militante quer perseguir os que têm fé. Esse é agressivo. Nós temos de ter muita compreensão para toda a gente, inclusive para com quem não entende nada do que é ser cristão e pensa que o ser cristão é uma espécie de ópio impeditivo da decisão sobre o que se quer. Depois há o cristão indiferente. E há, ainda, o cristão tradicionalista, que vai ao batismo, à primeira comunhão, ao crisma, ao casamento católico, ao batismo dos filhos… portanto, que segue as tradições. Este é um ponto que pode levar depois a descobrir se vale ou não a pena aprofundar a fé. Quando essas pessoas com o cristianismo tradicionalista querem aprofundar a fé, tornam-se cristãos espetaculares.
Qual é o seu grande modelo de fé (para além de Jesus Cristo, presumo)?
Para mim, há um modelo de fé fantástico: o Papa João XXIII. Porque casou a relação com Deus com a relação com os homens na Igreja. Ser cristão não é só relacionar-me com Deus. Ser cristão é eu relacionar-me com o meu tempo presente e tentar levar a Igreja a aproximar-se do mundo contemporâneo para lhe revelar alguma coisa de novo. A maneira de ser padre e crente de João XXIII fascina-me e, por isso, dou esse modelo. Mas também podia dar o modelo do meu pai…
O seu pai foi membro das Conferências de São Vicente de Paulo desde que entrou na Universidade até aos 93 anos. Este foi para si, de alguma forma, um exemplo importante sobre como o voluntariado pode fazer parte estruturante da vida? Em linha de conta com a «pastoral de proximidade», a que o Papa Francisco se refere…
Nem mais. Se eu não tiver objetivos para além da minha vida profissional para ganhar dinheiro, sou um pobre de Cristo. Não vou a parte nenhuma, não tenho sonho, não tenho poesia. Não tenho capacidade de ultrapassar as dificuldades… É muito interessante que eu tenha sonhos que vou realizando, a pouco e pouco, que me permitam ultrapassar-me para me sentir feliz. O Papa Francisco veio trazer-nos uma coisa muito importante: compreender que qualquer líder na Igreja tem de ser próximo de todos. É a dinâmica de proximidade (fazer-se próximo), a dinâmica de universalidade (de todos), para a todos revelar o essencial que é uma pessoa: Cristo. De facto, este Papa aproxima-se das pessoas com uma facilidade absolutamente extraordinária. Tenho contado muitas vezes a história de uma rapariga que ficou à espera de um bebé de um senhor casado que queria à força que ela abortasse. Ela, por sua vez, não queria abortar. Em último recurso, resolveu escrever ao Papa que, no dia seguinte, lhe ligou. A isto chama-se proximidade ativa. O que é que lhe disse? Sem violentar em nada a sua liberdade, disse-lhe: «A vida é um dom de Deus. Faz o que quiseres». E avançou: «Se precisares de apoio económico, social, conta comigo». Finalmente, disse-lhe: «E se quiseres batizar o teu filho, eu ofereço-me para padrinho». Isto é proximidade. E há mais casos concretos em que o Papa Francisco demonstra este grau de proximidade – uma freira, em Espanha, um vendedor de jornais, em Buenos Aires – pegando no telefone para falar diretamente com as pessoas. Faz-se próximo de todos. Eu estive diante do Papa para o cumprimentar. Oficialmente, das mil pessoas que estávamos na sala eu tinha sido escolhido – em 20 pessoas – para ir cumprimentar o Papa. E o Papa passou por este nosso grupo de 20 – onde estavam ministros, embaixadores e eu na qualidade de coordenador de uma ação no Vaticano –, fez-nos adeus, foi sentar-se na cátedra e recebeu 80 doentes em cadeiras de rodas. Falou a cada um deles pessoalmente. E nós ficámos contentes. Ele não quis próximos aqueles que estão já realizados na vida. Mas não nos tirou por isso a alegria. Porque o seu gesto de proximidade para com aquelas 80 pessoas foi mais importante do que o cumprimento para a fotografia com que eu iria ficar. Aqui no meu gabinete tenho fotografias com todos os outros Papas, à exceção deste. Mas não me importo. Ele teve um ato de proximidade com o mais pobre. Para além da proximidade, o Papa Francisco tem uma segunda preocupação: não quer revelar uma Igreja de doutrina, mas de atos e gestos. Que sejam um sinal. Por exemplo, o facto de ter parado junto ao muro divisório da Faixa de Gaza. Ninguém imaginava que o pudesse fazer, meu Deus! Apear-se do carro e ir beijar o muro… Não, foi o muro das lamentações! Não foi o muro da divisão. É um gesto fascinante. Como este, tem muitos outros. Quando agora recentemente olhou para o Patriarca da Turquia… Assinaram ambos um pacto de colaboração, ficaram a olhar um para o outro e, não resistiram, deram um abraço. Este foi um gesto que rompeu o protocolo e que revela o anúncio de algo diferente. O que ensina o Papa com isto? Não são pontos doutrinais. Ele ensina uma pessoa: Jesus. Mais fantástico ainda foi convocar um Sínodo dos Bispos para falar sobre a família, sem medo de colocar uma série de problemas, abrindo o debate a toda a gente que quisesse falar com 38 questões, muito concretas. Só na Diocese de Lisboa, responderam 14 mil pessoas. É um Papa de abertura, um Papa de janelas abertas. Como ele diz: «Da Igreja em saída». Da Igreja que não fica dentro das paredes da própria Igreja. Não fica na sacristia, vai em saída. O Papa quer uma Igreja que irradie, que seja apóstolo, que anuncie alguma coisa. Não é uma Igreja que fique parada a rezar dentro do templo. Não. Uma Igreja que vá. É um homem fantástico para estes novos tempos.
Ora, ser solidário é romper a solidão dos outros. (…) É levar o peso do outro. Não é ter pena do outro. É levar o peso do outro. Isto é a verdadeira solidariedade. Faço meu o drama que o outro está a viver.
Já o ouvi dizer que «ser solidário é assumir o peso do outro, levá-lo também comigo». Como é que esta atitude se compadece com uma sociedade pouco tolerante e individualista?
Atenção: esse é um ponto essencial do Cristianismo. A certa altura, Jesus disse: «Dou-vos um mandamento novo. Que vos ameis uns aos outros, como eu vos amei». Nem sequer falou no amor de Deus. Atenção! E depois acrescenta: «Por isto vos conhecerão como meus discípulos». Portanto, o sinal do cristão é o amor fraterno. É a preocupação para com o outro. Então, automaticamente, se eu vejo alguém que está só, tenho de ser solidário para com ele. O drama da solidão é o maior que hoje existe, não apenas para o idoso, mas para o doente, para a mulher – que, tantas e tantas vezes, é deixada sozinha… já que passou a ser uma concorrente do homem na vida profissional, na vida social, na vida de cultura e, por isso, é uma inimiga… acaba por cair na solidão. Ora, ser solidário é romper a solidão dos outros. E só se rompe com aquilo a que os ingleses chamam compassion. É levar o peso do outro. Não é ter pena do outro. É levar o peso do outro. Isto é a verdadeira solidariedade. Faço meu o drama que o outro está a viver. É por isso que cito muitas vezes um autor que não é crente sequer, muito menos cristão: Erich Fromm. No seu livro A Arte de Amar, diz que amar, se se quiser ser solidário, é eu sair de mim e ir ao encontro do outro para o fazer feliz. Não é o ser feliz à custa do outro. Na vida social, muitas vezes, as pessoas querem ser felizes à custa do outro. Isto é de um egoísmo atroz. Não pode ser! A minha preocupação deve ser a de comprometer-me, sacrificar-me, renunciar a muita coisa para que ela, ou ele ou o outro… seja feliz. Isto é que é o verdadeiro amor, a verdadeira solidariedade.
A caridade não é só dar o pão para a boca. Não! É dar o pão e ensinar a encontrá-lo.
Aos 23 anos de idade, foi ordenado padre na Diocese da Guarda, onde permaneceu ao longo de nove anos. O que aprendeu neste período?
Em primeiro lugar, senti que a cidade – que tinha naquela altura 10 mil habitantes (agora tem cerca de 40 mil) – era extremamente simpática comigo. Porquê? Porque eu, depois de um ano na cidade, fui nomeado professor na então Escola Industrial e Comercial da Guarda (agora Escola Secundária). A partir daí, comecei a contactar com muitos jovens. O bispo confiou-me os jovens. Na verdade, quando comecei a trabalhar com os jovens, a cidade passou a olhar mais para eles. Nunca mais me esqueço que, no segundo Natal que vivi na Guarda, consegui juntar 150 pequeninos entre os 8 e os 11 anos e, entre todos, fizemos o coro na missa do galo. Aquilo impressionou tanto o bispo, que ele próprio, o bispo, convidou-os a todos a irem a sua casa e a lá festejarem o Natal com chocolate e churros. Assim foi. O bispo tinha-se preparado para ter em casa chocolate e churros para dar aos meninos que tinham cantado na missa do galo à meia-noite. Portanto, a certa altura, senti que o meu trabalho apaixonado com os jovens, com as famílias, a cultura… Era uma alegria de viver. O tempo que me marcou ali muito foi não só pela enorme ligação aos jovens, mas também pela vertente cultural. Aliás, ainda hoje, sou muito amigo de colegas meus que eram professores de diversas cadeiras na Escola Industrial e Comercial da Guarda ou professores de liceu. Lembro-me que, quando havia em Coimbra uma ópera, uma peça de teatro, um grande festival de ballet, nós às seis da tarde íamos a Coimbra, víamos o espetáculo, metíamo-nos outra vez de volta à cidade da Guarda e, no dia seguinte, às oito da manhã, estávamos a dar aulas. Claro que éramos muito novos e, por isso, não tínhamos sono! Isto para explicar a importância que dei também à cultura. Fui também cofundador da Pró-Arte na Guarda, no âmbito da qual havia todos os meses uma sessão de arte, com violinistas, pianistas, violoncelistas… Isso apaixonou-me. A vida ali apaixonou-me. Gostei muito, muito de trabalhar nesta cidade que, na altura, era muito cosy, muito íntima. Adicionalmente, dedicava-me ainda ao trabalho com as Conferências de São Vicente de Paulo, por um lado, e à criação da Escola dos Gaiatos, por outro lado. Os miúdos que eram bate-chapas, que trabalhavam nas garagens a remendar pneus, eram ali integrados. Conheço pessoas que entretanto seguiram Direito, Economia, Letras… que fizeram essa escola até ao 7.º Ano. Trabalhavam nas firmas e à noite iam estudar. E, finalmente, ingressaram nas universidades. A caridade não é só dar o pão para a boca. Não! É dar o pão e ensinar a encontrá-lo. Como dizia Mao Tsé-Tung, «Não basta dar o peixe, é preciso ensinar a pescar». E nós tínhamos efetivamente essa preocupação. Foi um tempo muito bonito. Mas, a determinada altura, achei que precisava de voos mais rasgados e pedi ao bispo para me deixar ir para Roma, onde estive a estudar num tempo que coincidiu com as últimas sessões do Concílio [Vaticano II].
Segue para Roma pela mão do Padre Vieira Pinto…
Sim. O Padre Vieira Pinto aparece na Guarda para uma série de conferências e eu estive com ele num encontro que ele próprio orientou, na Guarda, ao longo de 15 dias. No final desse período, ele disse ao bispo: «Deixe-me levar este padre comigo». E eu disse: «Olhe que eu quero ir». E foi de facto redentor para mim. Foi um tempo muito bonito.
No dia 21 de novembro de 1964 dá-se então o seu batismo em Roma, onde assiste às últimas fases do Concílio Vaticano II (1962-1965), um dos marcos mais significativos da história da Igreja. Que recordações tem desse período?
Recordo três homens, de facto muito importantes, nesse trabalho. O primeiro é o Padre Ricardo Lombardi, que era amigo pessoal de Pio XII, Papa a quem um dia orientou um discurso em que dizia que o mundo tinha de deixar de ser selvagem para ser humano, teria depois de passar de humano a divino e de divino segundo o parecer de Deus. Este discurso celebérrimo, de 11 de fevereiro de 1952, foi então “ditado” pelo Padre Ricardo Lombardi, com quem depois vim a trabalhar durante seis anos. Foi um homem muito importante na minha vida. A quem se junta também o Padre Vieira Pinto. Aliás, fazíamos um grupo. No Concílio [Vaticano II], há um outro homem que me é marcante e que foi meu professor: Bernhard Hering, o eticista mais importante para a Igreja e para o mundo nas décadas 1950/60, embora pouco conhecido. Bernhard Hering mudou o critério de avaliação da ética, dos atos para as atitudes. Mais importante do que avaliar atos, é avaliar atitudes. Trata-se de uma dinâmica, não de culpabilização, mas de dinamismo e transformadora da realidade. Bernhard Hering tem um livro fabuloso que se chama A Lei de Cristo. Por fim, marcou-me muitíssimo o Cardeal Lercaro. Era Cardeal de Bolonha e tinha a sua casa no meio de 70 jovens de 14 países do mundo que iam estudar para Bolonha. Ele era o protetor dessa multidão de jovens que em Bolonha iam valorizar-se para depois voltarem aos seus países e, nesses países, fazerem a revolução social necessária. Portanto, estes homens marcaram-me profundamente.
Depois da sua passagem por Roma, integrou um movimento teológico de divulgação e promoção do Concílio Vaticano II…
Sim, era o Movimento por um Mundo Melhor. Durante seis anos, andei pelo país inteiro e pelo mundo… Angola, Moçambique, Cabo Verde, Timor-Leste… a anunciar o Concílio Vaticano II. Eu não fazia mais nada do que anunciar o Concílio Vaticano II.
A mensagem que propagou nessa altura continua atual?
Mais do que isso, eu direi que a Igreja não mordeu suficientemente a riqueza do Concílio [Vaticano II], sobretudo em algumas áreas mais importantes. Estamos num tempo em que efetivamente é necessário levar até ao fim a mensagem conciliar e, numa área delicada que é da ordem temporal, assumir-se completamente a responsabilidade da Igreja. Essa responsabilidade está consagrada num texto fantástico designado Gaudium et Spes (A alegria e a esperança do mundo contemporâneo). Aí, na primeira parte, fala-se da luta da Igreja pela dignidade humana, pela comunidade humana e pela atividade humana, ou seja, o trabalho. E como é que isto se realiza? Em cinco campos: no mundo da família, no mundo da cultura, no mundo socioeconómico, no mundo da política e na construção da paz. Ora, a Igreja ainda está muito longe de conseguir empurrar o mundo, com os seus valores, nestes campos. Nesse aspeto, o Concílio [Vaticano II] está por fazer e temos de lutar muito para que se consiga fazer.
Portanto, quando celebramos os 100 anos da Primeira Grande Guerra, é nisto tudo que penso. Penso em 100 anos de convulsões, porque as tragédias não pararam. Estão aí para prová-lo os casos da Síria, do Iraque… Pergunto: o mundo não aprendeu?
Com o Natal vem também o final do ano e a necessidade de olhar para trás e fazer balanços. Em 2014, assinalaram-se os aniversários de 3 marcos incontornáveis na história da humanidade: 100 anos da Primeira Grande Guerra, 40 anos do 25 de abril de 1974 e 25 anos da queda do Muro de Berlim. Enquanto homem de fé, como comenta estes três factos históricos? Passados todos estes anos chegámos ao essencial?
Começo pela Primeira Grande Guerra, mas não posso deixar de associá-la à Segunda Grande Guerra, porque o fenómeno é o mesmo: o egoísmo de países que só pensam no seu interesse e que provocam conflitos sem serem capazes de se sentarem à mesa e de resolverem os seus problemas. Portanto, um diálogo para a paz é fundamental. Como diz o Papa João XXIII, na Pacem in Terris, no número 35, é necessário criarmos os pilares da paz: a verdade, a justiça, a liberdade e o amor. Se os líderes da humanidade não têm estes quatro valores, nunca chegam à paz. O que é que aconteceu nas duas grandes guerras? Os líderes que queriam conquistar o mundo para si – na Segunda Grande Guerra, isso é claríssimo com Hitler –, não respeitaram a verdade, criaram as suas próprias verdades. E o abuso da liberdade… Para afirmar a liberdade de uns, escravizavam-se os outros. Os campos de concentração são impressionantes. E, finalmente, o amor, a relação fraterna, que não houve. Daí resultou, na Primeira Grande Guerra, alguns milhões de mortos e, na Segunda Grande Guerra, 49 milhões de mortos… que deram origem à proclamação dos Direitos Humanos, como o grito de salvação. É por isso que fico escandalizado quando os parlamentos não respeitam os Direitos Humanos e fazem leis contra alguns deles. Não sou capaz de entender. Não estou a falar dos mandamentos da lei de Deus, mas dos Direitos Humanos aprovados por todos os países. Quando não os respeitam, fico aflito. Como é que os parlamentos dos diversos países sancionam coisas diretamente contra a dignidade e a vida humanas, contra o diálogo entre as pessoas, contra o sentido da justiça, contra o trabalho humano, contra o salário justo? Há aqui qualquer coisa que não está bem. Portanto, quando celebramos os 100 anos da Primeira Grande Guerra, é nisto tudo que penso. Penso em 100 anos de convulsões, porque as tragédias não pararam. Estão aí para prová-lo os casos da Síria, do Iraque… Pergunto: o mundo não aprendeu?
Quanto ao 25 de abril [de 1974], penso que é um momento extraordinário de liberdade. Mas toda a liberdade deve ser bem avaliada e bem vivida. Eu não posso celebrar a minha liberdade, contrariando a liberdade dos outros. Eu tenho que construir um país livre, em que todos sejam mesmo livres. E em que têm de ser dadas condições para que todos se sintam livres, não escravizados. Portanto, direi: ótimo o 25 de abril; difícil a governação. E como a governação é difícil, penso que é altura de todos os políticos se sentarem à mesa, entrarem num verdadeiro diálogo e colaborarem para o bem comum, que é aquilo que em termos de sociopolítica não se tem em consideração. Eu estou muito à vontade para falar disto. Sabe porquê? Porque desde Leão XIII até ao Papa Francisco, todos os Papas disseram que para haver progresso e desenvolvimento na sociedade eram precisas quatro coisas: o respeito pela dignidade humana, a procura do bem comum, a subsidiariedade e a solidariedade. A luta pelo poder e o desrespeito por estes valores criam uma intranquilidade tal… O Papa Francisco dizia agora aos deputados europeus para não estarem constantemente em quezílias e que se dessem as mãos, para que a Europa se rejuvenescesse, porque a Europa parece já uma velhota infecunda. Não pode ser. A Europa está de facto envelhecidíssima, não gera vida física nem intelectual nem social. Não gera paz, nem harmonia. É esta a minha leitura desta celebração do 25 de abril.
Quanto ao Muro de Berlim, gostava de contar uma história muito bonita. No início da década de 1980, eu fiz um trabalho intensíssimo centrado na construção de lares de idosos em Portugal. Mas nós não tínhamos dinheiro. Quem tinha dinheiro, nessa altura, era a Alemanha. A Igreja tinha uma organização para ajudar as comunidades, a Misereor, cuja responsável era uma rapariga muito simpática. Ela veio cá passar dois meses e, juntos, percorremos vários pontos do país para lhe mostrar os diferentes lares em necessidade de subsidiação. Bem, passaram-se entretanto anos e anos e, quando se dá a queda do Muro de Berlim, peguei no telefone e liguei a essa rapariga: «Onde paras?». Ela respondeu-me: «Estou em Colónia». Eu fiquei atónito: «Em Colónia? Então não estás a ver cair o Muro de Berlim?». Disse-me que não foi capaz, porque no dia em que foi construído o muro, a mãe dela pediu-lhe para ir ver a tia Anita, no lado ocidental. Ela foi e… não pôde mais regressar. Conclusão: não chegou mais a ver os pais. Portanto, disse-me: «Eu não sou capaz de ir ver cair o Muro de Berlim, tendo a imagem de me ter sido tirada a liberdade de atravessar a cidade para estar com os meus pais». Bem… e nós temos que saber dar a volta. Então sugeri-lhe que abríssemos ambos uma garrafa de champagne e saudássemos à liberdade, à derrota dessas divisões e ao reencontro dos povos. Assim o fizemos.
Das suas palavras de balanço destes marcos históricos deduzo que não chegámos então ao essencial. O que pode a Igreja fazer para recentrar o seu discurso no amor, o mandamento por excelência?
Sim, de facto, o amor é a síntese. O que é que a Igreja tem de fazer? Tem de anunciar. Não pode simplesmente contar as histórias do Evangelho, mas voltar à mensagem da relação com o outro. Conseguindo que, para cada um, o outro seja mais importante que ele próprio. Se nós conseguirmos virar este discurso, sair radicalmente do egoísmo e entrar radicalmente no altruísmo, penso que aí seremos capazes de começar a dar passos de pacificação, de compreensão, de entreajuda, de perdão, de reconciliação, de comunhão e de paz. Portanto, a Igreja deve focar-se neste anúncio. E, depois, os gestos. É que já ninguém acredita nas palavras… Atenção, atualmente, muito mais importante do que palavras, são os gestos. Dou um exemplo concreto. Todos os anos, na Igreja, há o dia missionário, em que habitualmente se pede para as missões. Aqui, na minha comunidade [Paróquia do Campo Grande], optámos por outra coisa. Andamos antes focados na formação de quadros para África. Por isso, vários sacerdotes, vindos de Angola, de Moçambique, etc., têm vivido e estudado aqui na nossa comunidade, suportando a paróquia todas as despesas para que eles possam formar-se e regressarem depois à sua diocese, ao seu mundo, e ali implantarem os valores que aqui adquiriram. A isto eu chamo promover. O amor concreto tem de ter gestos. Os gestos mais nobres, por sinal, são os da promoção humana.
Vários ensaístas, na tentativa de elencar as bases da identidade cultural europeia, referiram-se à Bíblia como um verdadeiro código de compreensão e interpretação da civilização. O Monsenhor Feytor Pinto é conhecido pelas suas brilhantes homilias e por tão bem enquadrar as mensagens bíblicas na atualidade. Que relevância tem a Bíblia nos dias de hoje?
Finalmente, a Bíblia está a ser lida. É que mesmo os cristãos não liam a Bíblia. E uma coisa é ler e outra ainda é aprofundar, descobrir a mensagem e saber levá-la à prática. Essa é a minha preocupação em cada domingo. O Papa Francisco, na Exortação Pastoral Evangelii Gaudium, do número 135 em diante, fala nas homilias, defendendo que não são tratados sobre a Bíblia, nem afirmação de dogmas doutrinais muito complicados, mas testemunhos de vida que a partir do acontecimento bíblico promovem a transformação do mundo à luz dos valores do Evangelho.
A paróquia está no meio da cidade. De portas abertas. Não para quem quiser entrar. Mas para nós sairmos e irmos ao encontro de todos e identificarmos soluções para os problemas colocados.
Enquanto responsável pela paróquia do Campo Grande, como descreve a relação da Igreja com a cidade de Lisboa? Lisboa é uma cidade cristã?
Temos parcerias com todas as instituições locais. O Colégio Moderno, por exemplo, vem aqui celebrar uma eucaristia em nome de um aluno que faleceu. Estamos em relação com o colégio. A Universidade Lusófona acaba de convidar-me para integrar o seu Conselho Geral Estratégico, não como professor, mas como pároco. Com a Junta de Freguesia estamos, neste momento, em conjunto com as Irmãs de São Vicente de Paulo e a Paróquia de São João de Brito, a preparar cabazes de Natal. Todos juntos, vamos fazer uma campanha para ajudar a responder às necessidades dos mais carenciados. Trabalhamos ainda com o Hospital de Santa Maria, com o Centro de Cuidados Continuados de São João de Deus. Esta interação é interessantíssima. A paróquia está no meio da cidade. De portas abertas. Não para quem quiser entrar. Mas para nós sairmos e irmos ao encontro de todos e identificarmos soluções para os problemas colocados.
As suas missas são assistidas por um público muito diversificado, abrangendo pessoas de todas as idades e com diferentes perfis. Qual o segredo para captar de uma forma tão equilibrada miúdos e graúdos?
É muito simples: recorro a uma linguagem que tem em atenção a comunidade. Se é da missa da catequese que estamos a falar, a minha homilia é de três minutos, com uma história incorporada e um salto imediato para conclusões importantes para a vida dos miúdos. E eles depois são capazes de encontrar o caminho. Mas se estamos a falar de jovens, já reoriento o discurso para os problemas típicos dos jovens. O segredo está em ter a linguagem própria para o auditório que está diante de nós. Já a missa do meio-dia é completamente diferente das outras. Atrai pessoas mais velhas, mais estabelecidas na vida, mais capazes de escutar uma mensagem com maior profundidade. Sabe como percebemos o nível de atenção da audiência? Observando a forma como as pessoas olham para nós. Por exemplo, se uma pessoa começa a olhar para o relógio, eu penso que devo calar-me imediatamente. Mas, felizmente, é raro olharem para o relógio. Quem conduz a homilia não é só o padre que a está a proferir, é também a sua audiência. Seria impensável ver alguém a dormir na minha frente. Significaria que não estaria a dizer nada que mordesse a vida das pessoas. Calar-me-ia logo. Uma linguagem de envolvimento que leva o outro a sentir que o problema é seu… Tenho grande alegria quando vejo que há pessoas que tomam notas durante a minha homilia. Recordo-me de uma professora catedrática de medicina que toma sempre notas e que um dia me disse: «Aquelas notas são muito importantes para mim, durante a semana inteira». É muito interessante.
Enquanto homem de fé, como olha para a sociedade em crise? Como caracteriza esta crise? Ao falarmos de uma crise financeira e económica não estaremos a escamotear uma profunda crise de valores?
Em primeiro lugar, a crise não está apenas em Portugal. Em Portugal, no entanto, talvez se tenha agravado. Porquê? Na sua pergunta dá-me precisamente essa resposta. É que a crise não é só económica. É uma crise de valores e, quando há uma crise de valores, as referências esbatem-se e as pessoas ficam fechadas nos seus interesses. E os seus interesses são ou ter muito dinheiro, ou ter muito poder. Esses são os dois jogos. As pessoas, em momentos de crise, tendem a centrar-se no seu próprio problema. Vivemos uma crise de acumulação de egoísmos, quando era necessário um tempo de partilha muito exigente de procura do bem comum. Neste momento, a nossa crise, sendo uma crise económica, é sobretudo uma crise de valores. As pessoas em geral têm efetivamente muita dificuldade em sair dos seus interesses políticos, económicos, sociais, para se abrirem aos valores da comunidade. O que tem acontecido nestes últimos dois anos é assustador… Os diversos casos que a justiça está a trabalhar são duríssimos. Só foram possíveis, porque cada um só pensou em si. Isto não pode ser. Mas é isto que tem acontecido, a todos os níveis. Devíamos perguntar-nos constantemente: «O que é o ideal para todos?». Mas preferimos perguntar: «O que é o ideal para mim?». Por isso, esta crise, que é de valores, precisava de uma educação para valores. E nós não temos uma educação orientada para os valores. A maior parte das escolas não educa, faz instrução (o que é outra coisa!). Apenas pensam no cognitivo. Ora o ser humano não é só cognitivo. A educação tem de ser bio/psico/social/cultural/espiritual e, até, religiosa. Tem de ter tudo isto. É porque a escola não tem esta preocupação que, depois, apenas muito poucas escolas aparecem com grandes resultados. Não educam o homem todo. O homem que apenas é educado na vertente cognitiva, a certa altura, quer é ver televisão, quer estar no computador, quer ver coisas engraçadas… Não está preocupado com a aprendizagem. A aprendizagem está relacionada com todos os aspetos da vida humana. E, se não for assim, as pessoas não se desenvolvem. Mas, nas escolas, não estamos a educar, estamos apenas a ensinar. Um amigo meu diz que «educar é formar integralmente a pessoa humana, através da assimilação sistemática e crítica da cultura». Ou seja, o aluno também deve saber criticar, mas a partir dos valores que tem. Só assim é criado um diálogo educativo, que faz crescer as pessoas. É tão bonita esta transformação da pessoa! Mas nós estamos de facto a viver uma crise civilizacional e não meramente económica. Não sei até se não estamos a perder completamente os valores da tradição e da civilização portuguesa. Ainda por cima, fala-se hoje muito em novas mentalidades, mas curiosamente vão buscar ideologias que não respeitam todos os valores que há que respeitar sempre na vida humana. Cai-se num certo modernismo, mas em termos de ideologia isto é terrível. Temos de fazer isto ou aquilo porque os outros já fizeram? Andamos a copiar ideias sem as assimilarmos. É dramático. A crise, em conclusão, é mesmo global. Tenho receio de que realmente se agudize até. Porque a linguagem não está centrada em recolher os valores de todos para o bem comum…
Como podemos preparar melhor este Natal? Que mensagem poderíamos levar mais a sério neste período? Como começar de novo?
Com pequenos gestos. A eucaristia que celebrei hoje tinha um texto fantástico de Isaías, com três partes: vai surgir um Rebento de Jessé, é a imagem do Salvador, do Messias; mas virá com o seu espírito de inteligência, de vontade, de sabedoria, de fortaleza, de amor, de temor – portanto esse tempo novo do Salvador vem revestido destes valores-chave; termina a dizer que vem o tempo em que o lobo viverá com o cordeiro, o bezerro e o leãozinho andarão juntos, etc. Ora isto é um mundo novo. É isto que o advento nos pede. Isaías propõe-nos um tempo novo, que nós precisamos de conseguir construir. Esse tempo novo já não depende de Deus, mas do homem saber ou não aceitar a mensagem de Deus. E a mensagem, no Natal, é uma mensagem de esperança. É preciso acreditar.
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