Ana Margarida de Carvalho, galardoada pela Associação Portuguesa de Escritores com o Grande Prémio de Romance e Novela com o seu romance de estreia Que Importa a Fúria do Mar, surpreende-nos agora com Não se Pode Morar nos Olhos de um Gato.
Neste novo livro, cujo título recupera um verso de Alexandre O’Neill, é-nos dada olhos dentro a narrativa do naufrágio de um navio clandestino de escravos, que seguia entre a Baía e o Rio de Janeiro, num Brasil onde a escravatura já começava a distanciar-se, com o dealbar do século XIX à porta. O grupo de náufragos, já numa praia intermitente, dependente do movimento da maré, faz-se representar com diversidade certeira (definida com pinças pela autora) por um capataz, um escravo, um criado, um padre, um estudante, uma afidalga, a sua filha e um pretinho a iniciar-se na capacidade de andar.
Surge, pois, neste contexto de sobrevivência, um maior desafio na convivência com a diferença social e cultural, racial, de género e credo, do que a vencer os obstáculos do mar. Certo é que o mar tende a dar-lhes a todos novas oportunidades a cada dia e a cada noite, contrariando a história de cada uma das suas vidas (que não perdem dimensão, nem quando comparadas com o naufrágio), atoladas de empecilhos, dramas e fatalidades. Chegar à pele do outro é a escapatória feliz, dentro da catástrofe.
À cabeça do texto, Ana Margarida de Carvalho brinda-nos com uma «santa de pau embarcada», a quem todos os passageiros confiam os seus mais íntimos pedidos: «(…) em caso de naufrágio, destinaram-me, porém, a poupar as almas. Não é de pouca monta o contrato». É com esta responsabilidade que a «mulher de pau velho e carunchoso» segue, parecendo dar total primazia a uma componente religiosa quase implícita a todos os humanos. Passo a passo, contudo, a autora embala-nos com a mesma assertividade do mar e faz-nos ver qual é exatamente o lugar do Deus de Não se Pode Morar nos Olhos de um Gato.
A ênfase do livro é sempre devolvida à inevitabilidade de interação entre todos os condóminos do navio negreiro, à luz de uma frase charneira: «(…) a timidez é o adubo da cobardia». Parece que o equilíbrio às diferentes relações vai sendo dado à medida que cada um se descose de si, perdendo a timidez de se relacionar com a diferença, para se identificar com o outro e sair da «cinta de doze varas» para onde o umbiguismo e a ausência de altruísmo tudo empurram.
Ana Margarida de Carvalho mantém neste romance uma constância literária suprema. Conserva da primeira à última páginas uma coerência constante, demonstrando um grau de maturidade na escrita equiparável aos grandes nomes da literatura. São sintomas deste estado de amadurecimento o aguçado sentido crítico, a capacidade de desconstruir as convenções e evidenciar as questões sociais fraturantes, o domínio da linguagem, a diversidade vocabular, o à vontade com expressões extemporâneas, a verosimilhança das personagens, mesmo (ou particularmente) na sua diferença.
Recorrendo a uma das suas frases para mim mais marcantes neste segundo romance, Ana Margarida de Carvalho segue em Não se Pode Morar nos Olhos de um Gato «(…) o método de quem já tem os passos do futuro a tracejado no chão». Com muita clarividência.
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