Cem anos antes do meu nascimento, corria 1881, era publicado na revista carioca A Estação e em seguida no volume Papéis Avulsos o conto que ainda hoje faz referência de destaque à obra do brasileiro à frente do seu tempo, Machado de Assis. Falo de O Alienista, uma pequena narrativa que ora é colocada na prateleira dos contos, ora na das novelas, e que, com a distância britânica que o autor mantém ininterruptamente, satiriza a época em que é escrito, seus costumes, perceções e cosmovisão.

Um médico «filho da nobreza da terra», Simão Bacamarte, com formação académica certificada em Coimbra e em Pádua, regressa aos 34 anos ao Brasil, onde se instala numa pequena vila, Itaguaí, que vê pelas suas mãos nascer um famigerado manicómio, a Casa Verde. Por ordem de Simão Bacamarte, são internados nesse hospício dezenas e dezenas de cidadãos locais, a reboque da dedicação incansável à saúde da alma do carismático – e não menos controverso, a determinada altura – Dr.

Com 40 anos, Simão Bacamarte casa com «D. Evarista da Costa e Mascarenhas, senhora de vinte e cinco anos, viúva de um juiz de fora, e não bonita nem simpática». Com ela, o Dr. levava por diante uma vontade: ter filhos, os quais, vindos de uma mulher com aparência de saúde, bons hábitos alimentares e de sono, só podiam vir à vida com os melhores índices de Apgar. Mas rapidamente se enganou: D. Evarista da Costa e Mascarenhas foi mulher que não lhe deu filhos. Mais Simão Bacamarte «mergulhou inteiramente no estudo e na prática da medicina».

Com a Câmara, fez uma parceria para a criação do hospício, a Casa Verde, onde passou a alojar os doentes mentais de Itaguaí e arredores. Foi este então o seu tubo de ensaio para a observação, a classificação e o tratamento da loucura e no âmbito do qual à partida só eram admitidos os casos verdadeiramente patológicos. Mas, sistematicamente, todos os cidadãos e mais alguns passaram a ser internados por Simão Bacamarte na Casa Verde, sem ficarem transparentes o suficiente os critérios de cada internamento, nem ninguém conseguir perceber exatamente «(…) quem estava são, nem quem estava doido». «Tudo era loucura». É então que surge uma rebelião do povo de Itaguaí, liderada por Porfírio Caetano das Neves, personagem através da qual Machado de Assis personaliza a ambição e o poder políticos, sem olhar a meios para os fins. Uma vez ultrapassada e gorada a rebelião, Simão Bacamarte voltou porém a ganhar a admiração dos demais e a merecer os comentários mais lisonjeiros pela «(…) convicção científica e abnegação humana». Elogios que não o livraram, todavia, de ser apontado como, quiçá, o verdadeiro louco a existir na pequena Itaguaí.

A crítica social e a análise psicológica são duas das principais características que o conto machadiano explora e que inauguram, na obra do autor, o estilo realista. Por meio de um narrador omnisciente, Machado de Assis permite ao leitor penetrar nas personagens e conhecer o que está para além das aparências. O Alienista retrata, assim, uma tentativa de identificação das fronteiras da normalidade e do seu contrário, relativizando e desconstruindo a objetividade (e, com ela, o obscurantismo) da própria prática científica.

O escritor que experimentou praticamente todos os géneros, respeitado em vida também pela sua atividade jornalística e pelo rasgo crítico, quer na esfera social, quer na literária, Machado de Assis, primeiro presidente da Academia Brasileira de Letras, foi e é por muitos considerado o maior escritor brasileiro de sempre. E que eu começo, alegremente, a ler agora.

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