Desobriga-nos de apresentações. É um dos nomes tutelares da literatura portuguesa, colecionadora dos prémios mais prestigiantes no meio, contemporânea de tantas outras figuras reputadas da literatura, de dentro e de fora de portas, com as quais privou e certamente alimentou a sua permanente exigência intelectual. Falo de Agustina Bessa-Luís, a escritora que há pouco mais de 10 anos assinalava os seus 85 de idade com um texto autobiográfico delicioso, com alusão aos locais, às pessoas, aos momentos da própria família, com várias fotografias inéditas do álbum familiar. É O Livro de Agustina Bessa-Luís, assinado pela própria Agustina Bessa-Luís. Uma amiga que a adora recomendou-mo, entusiasta. E eu segui, curiosa, a recomendação.
Mal comparado, ou não, fez-me lembrar as Memórias de Adriano, de Yourcenar, nas aceções que Agustina (tomo a liberdade de a chamar assim) faz sobre o ser humano, os valores, as características das personalidades, o saber viver e a forma como se vive. No meu pensamento, rapidamente se deu um paralelismo com algumas das reflexões que a escritora belga magistralmente indexou ao famigerado imperador romano.
Recupero uma das últimas frases deste livro de Agustina: «A verdadeira fase do que é humano nunca ninguém a viu». Agustina parece materializar uma tomada de consciência sobre a complexidade, a riqueza, do ser humano. Na sua mais completa intemporalidade. Ao mesmo tempo, situa-nos na especificidade da sua época: «Minha avó morreu tinha eu dez anos. Foi muito censurado eu não vestir luto carregado. Era nas férias grandes e não há luto que chegue ao Setembro delicioso dos nossos dez anos». E, nisto, vai percorrendo os elementos mais próximos da sua família. E os vários percursos.
Rega pelo meio as descrições com ponderações sobre si própria, que nos ajudam a melhor observar a escritora, a mulher, a menina: «Devo dizer que nasci na região de Amarante e que sou um produto da região, como o vinho verde, que não embriaga mas alegra». Pelo meio, ainda, introduz apontamentos acima da espuma dos dias, a fazer crer que já pensou sobre a vida e sabe como a vida é: «Ter graça vale mais do que ter fama». E de novo sobre si mesma: «Tenho ainda essa aspiração de caminhar sem rumo, dizem que é um fio de epilepsia. Talvez seja. Talvez a liberdade seja um sintoma epiléptico». Surgem, ainda, os lugares de Agustina: «Eu gostei da Póvoa, vivi lá os passos mais prometedores da minha vida, entre o sagrado e o profano». E comparações sobre os lugares: «Enquanto que no Minho havia uma fidalguia rural um pouco promíscua e feliz com a gente pobre, o Douro era arrogante, hierárquico e com alguns fumos da cidade, onde se passava o Inverno, senão o ano quase todo».
E, na evolução da leitura, surgem as deambulações sobre a escrita. As interações com os escritores mais famosos. Portugueses (Aquilino Ribeiro, Ferreira de Castro, Miguel Torga ou Teixeira de Pascoaes) e estrangeiros (Camilo José Cela, Constantin Paoustovski ou Ilse Losa). Os primeiros exercícios de escrita. E a maturidade maior que alcançou sobre o escrever, resumida nesta frase: «Há pouca gente que perceba que escrever é uma espécie de danação em que às vezes se têm encontros com Deus». E na sabedoria de Agustina não há incompatibilidade com a esperança. É uma convicção que ganhamos quando lhe lemos, também neste belíssimo livro, estas palavras: «O destino não é uma fatalidade, é um conflito breve com um sonho».
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