O Quarto do Bebé é o livro em que Anabela Mota Ribeiro se estreia brilhantemente no campo da ficção, num registo qualificado na contracapa como «romance autoficcional em forma de diário íntimo». Três grandes mulheres da literatura lusófona que se juntam na mesma contracapa, Lídia Jorge, Djaimilia Pereira de Almeida e Hélia Correia, são unânimes a observar, nesta obra, o «invisível», a «subconsciência» e a «floresta humana, feminina». Mergulhamos nestes territórios quando entramos neste quarto de bebé, a «casa fechada que é a cabeça de cada um de nós» ou esse edifício inteiro que somos quando nos despimos numa conversa frontal e íntima connosco próprios: «Estar a sós comigo, a falar comigo».

Combinando elementos autobiográficos e reflexões filosóficas, universais, este romance sai pela mão de Anabela Mota Ribeiro a vincar o confinamento, uma doença e uma longa gestação. A narrativa que lemos parte da descoberta, pela filha de um psicanalista falecido, de um diário pertencente a uma das pacientes do pai, Ester do Rio Arco, intitulado “Fala Orgânica”. A leitura deste manuscrito torna-se uma experiência transformadora para a protagonista, levando-a a revisitar as suas relações e, a partir do tempo presente do seu diário, a imergir nas fundações.

Este enquadramento é ponto de partida para a exploração contígua do isolamento vivido em 2020 e as mudanças impostas por uma pandemia chegada de surpresa, exacerbando sensações de clausura física e emocional. E eis que este quarto de bebé, inicialmente pensado como espaço de vida e renovação de gerações, impõe-se como uma flecha que reflete o tempo e a oportunidade para a maternidade (ou não), a infertilidade e a amarga evidência de uma ausência (só) consolada na criação intelectual e emocional. Neste vaivém entre as raízes e o futuro, a autora leva pela memória nem sempre clara uma narrativa agregadora de gerações e legados. Situa-se, também, na sociedade patriarca ao expor com tom contundente a violência exercida sobre as mulheres, reféns de normas sociais e culturais machistas e misóginas.

À medida que o nosso mergulho se aprofunda nesta leitura, vamos testemunhando uma escrita rica, performativa, curativa, se quisermos. Encontramos no estilo de Anabela Mota Ribeiro, com tamanha probabilidade, o tom criativo de Annie Ernaux, que tanto admira. Direto, como se de uma conversa escorrendo no nosso pensamento se tratasse, carregada de simbolismo na representação de um certo caos interior à procura de sentido para experiências de sofrimento e a tentativa de uma revitalização possível. O bebé que embalamos provisoriamente, com esta leitura, é a coreografia interior de uma personagem principal em desabafos, metamorfoses e confronto emocional.

O Quarto do Bebé oferece, em paralelo e ao longo de todo o arco narrativo, uma visão antropológica da história recente de Portugal, traçando o impacto da Guerra Colonial nas famílias portugueses, relações entre géneros e linhagens de geração em geração. Anabela Mota Ribeiro escalpeliza o ser humano, o campo de batalha incrustado na pele dos mais frágeis e miseráveis, como tantas vezes as mulheres.

O livro que tenho em mãos, assinado pela autora, tem o dom de elevar desabafos íntimos e reverberações físicas a questões universais, simbolicamente (re)interpretadas por três termos verbais, oficinais, que vamos ouvindo ao fundo como ladainha: «tear, tecer, costurar». Assim é tratada a vida neste livro que vai às vísceras fazer a pergunta elementar: «De onde é que venho?».

O Quarto do Bebé, Anabela Mota Ribeiro 72

 

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