Com o subtítulo “O Poder da Esperança”, o mais recente livro de José Tolentino Mendonça, O Que É Amar um País, é uma coletânea de trechos do pensamento do cardeal português, também responsável pela Biblioteca Apostólica e o Arquivo Secreto do Vaticano. Quaisquer trechos do seu pensamento já mereciam a nossa mais reforçada atenção. Estes excertos, acima de tudo, fazem uma radiografia do significado simbólico da pandemia que a todos chegou, com o que de verdadeiramente extraordinário isso tem ao surgir em cima do próprio tempo. Talvez até pudesse ter esperado uma maior distância sobre os acontecimentos. Mas José Tolentino Mendonça sabe quão importantes podem ser as suas palavras para uma compreensão urgente do que aconteceu, acontece e acontecerá. E o impacto no que somos.
O Que É Amar Um País arranca com o discurso de José Tolentino Mendonça proferido por ocasião do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas (10 de junho de 2020) e prossegue com as suas reflexões sobre o poder da esperança e uma oportuna e necessária conceção de evolução de um tempo de calamidade para o da graça. O autor advoga que este tempo inusitado «nos confronta com múltiplas mudanças, mas sobretudo nos coloca no interior turbulento de uma mudança de época». Vai às raízes, refere o pacto comunitário que a todos nos une irremediavelmente, fala-nos de um desconfinamento que pressupõe que sejamos protagonistas e parte ativa de um projeto mais amplo, comunitário, universal. Chama Camões à lembrança para realçar o papel da poesia enquanto bússola da interioridade.
Após o discurso do 10 de junho, transcrito na íntegra, encontramos ainda dois separadores cruciais: “O poder da esperança” e “Do tempo da calamidade ao tempo da graça”. A propósito da esperança, ainda que confrontados com a constatação de que afinal sabemos menos de nós e da vida do que imaginávamos, refere numa importante nota de incentivo: «Parece paradoxal, mas o tempo presente representa também uma oportunidade para nos reencontrarmos. Confinados a um isolamento, compreendemos talvez melhor o que significa ser – e ser de forma radical – uma comunidade». O tempo de pandemia, advoga, surge como uma palavra de ordem para o ser (por oposição ao ter a que porventura estaríamos já demasiado mal habituados): «Temos de olhar para a quarentena não apenas como um adverso congelamento da vida que nos deixa manietados, elencando de modo maníaco o que estamos a perder. Sairemos mais amadurecidos se a aproveitarmos como um dom, como um espaço plástico e aberto, como um tempo para ser».
Na sua já célebre interpelação sobre a importância de parar demoradamente sobre o belo e a partir dele deixar que o espanto e o assombro tomem conta de nós (numa comparação com o retrato improvável que também já nos fez nas suas crónicas semanais sobre a cigarra e a formiga), José Tolentino Mendonça pergunta: «O que significa sermos capazes de olhar os lírios do campo e as aves do céu? Significa adotar uma atitude contemplativa». Para José Tolentino Mendonça, em resumo, «a redescoberta do poder da esperança é a primeira oração global do século XXI».
Na parte em que sugere uma passagem evolutiva do «tempo da calamidade ao tempo da graça», o cardeal português integra diversas referências ao papel nevrálgico da literatura, na sua consolidada arte de ligar o sentido religioso à cultura. Numa menção específica a Flaubert, recorda-nos: «Falando de livros, o romancista dizia que a sua função é dotar a vida de uma consciência suscetível não só de explicar que vivemos, mas também de nos iluminar acerca das razões por que vivemos». José Tolentino Mendonça sublinha, aqui, uma apologia do sentido do viver. E vai mais longe: «A corrida que nos impomos é produzir mais para consumir mais. E, com isto, desaprendemos o essencial da vida. Ora, precisamos de uma nova sabedoria, de modelos mais integrativos, de visões capazes de dialogar com a inteireza da pessoa humana, nas suas diversas dimensões».
Nesta sua visão em cima de um tempo de calamidade, o autor recupera um outro autor essencial, Camus, para invocar a importância de o coração aproveitar o contexto de mudança para se modificar, ainda que, como o próprio Camus escreveu, «o bacilo da peste possa chegar a ir embora sem que o coração do Homem se modifique». Mas a última palavra de José Tolentino Mendonça é, de forma absolutamente inequívoca, de esperança. De graça: «Através da proximidade, de uma proximidade inventada e reinventada, o tempo da graça é capaz de visitar o tempo da calamidade».
Neste livro O Que É Amar Um País, o autor, figura tutelar e titular de uma das vozes mais radicais e únicas da atualidade, diz-nos por fim que «não se envelhece para morrer. Envelhecemos para nos saciarmos de vida e desse modo sentirmos que, mesmo escassa ou vacilante, a vida é o milagre mais espantoso, mais indescritível e pródigo que nos tocou em sorte».
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