Numa das últimas visitas à Livraria da Travessa, é-me recomendado este belíssimo livro: O Rio de Clarice: passeio afetivo pela cidade (Autêntica Editora), de Teresa Montero, uma das biógrafas da incontornável Clarice Lispector. Ao dar a conhecer os lugares icónicos de Clarice, Teresa Montero faz também uma apologia da relação com o Rio de Janeiro, contribuindo para um importante encontro entre o indivíduo e a sua cidade, a cidade e os seus habitantes.
O Rio de Janeiro escolhido para esta apologia é o cenário onde Clarice viveu durante 28 anos. Ao circularmos pelos lugares de Clarice – Tijuca, Centro, Catete, Botafogo, Cosme Velho, Jardim Botânico e Leme –, vamos construindo a nossa própria perceção da cidade. Ruas, edifícios onde residiu e trabalhou, praças, praias, restaurantes, hotéis, padarias quiosques, livrarias, cinemas, parques e, sempre no centro da memória, o Jardim Botânico. Entre as referências ao espaço, surgem embaladas por uma viagem no tempo observações de Teresa Montero sobre uma Clarice indesligável da cidade e das pessoas com quem se cruzou e refletiu a literatura. Contamos, ainda, claro, com a recuperação de citações de Clarice alusivas aos seus lugares. A presença enigmática e absolutamente marcante da escritora vai pontuando, pois, a nossa própria visita imaginária ao Rio.
No Rio de Janeiro onde Clarice desembarcou em 1935, somos desde logo confrontados com a Rua Primeiro de Março, onde se localizava a Agência Nacional, na qual Clarice ingressou no jornalismo. Da Agência Nacional, passa para o jornal A Noite, destacando-se por ser a única «mulher na redação». A sua beleza, o tom de voz e a forma de rir encantaram os colegas. Lembramo-nos, neste livro, da importância de Lúcio Cardoso na publicação do primeiro livro de Clarice, Perto do Coração Selvagem. Passamos pelo curso de Direito na Universidade do Brasil e pelo casamento com Maury Gurgel Valente, cuja carreira diplomática levou Clarice a residir em Belém, Nápoles, Berna, Torquay e Nova Iorque.
De novo de regresso ao Rio, em 1959, voltamos aos lugares que continuam hoje a contagiar-nos com o universo clariciano. Neste segundo período, ficamos positivamente contaminados com o significado do Leme, a simbologia de um novo ciclo e a recuperação da escrita: «foi o bairro onde Clarice Lispector escreveu a maior parte de sua obra, doze dos dezassete livros publicados ao longo de quatro décadas». Passamos pela Livraria Eldorado, onde «Clarice autografou cerca de 150 exemplares em pé». E apesar de um mercado editorial com dificuldade em assimilar a sua obra, Clarice seguia grão a grão com as suas publicações, às quais adicionava participações na imprensa, como cronista no Jornal do Brasil (1967 a 1973) e na revista Manchete, na qual publicou entrevistas feitas às figuras mais proeminentes das letras e das artes do Brasil e da América Latina, como Lygia Fagundes Telles, Jorge Amado, Rubem Braga, Fernando Sabino ou o Nobel da Literatura Pablo Neruda. São feitas referências ao «cigarro Hollywood com filtro» e à Coca-Cola que não podiam faltar-lhe. É-nos apresentado o botequim onde comprava tudo, atendida pelo português Manuel Constantino. Ficamos também a saber que «adorava ouvir música clássica». Conhecemos o seu cão, Ulisses, e a sua empregada que esteve na génese de A paixão segundo G.H.. Ficamos atónitos, porém, com as «marcas do incêndio que sofrera em seu apartamento na rua Gustavo Sampaio, no Leme, no dia 14 de setembro de 1966». Chega-nos também a lembrança do Hospital da Lagoa, onde foi internada no dia 17 de novembro de 1977, com o irreversível cancro no ovário que a levou à morte em dezembro do mesmo ano.
Forrado por dentro com uma pintura de Clarice e incluindo entre páginas muitas fotografias e mapas de um Rio intemporal, este livro posiciona-se como um projeto editorial e gráfico imperdível, ao mesmo empo que faz a extensão do passeio desenhado e dinamizado há mais de dez anos por Teresa Montero na cidade da luz e para o qual têm sido atraídos curiosos de dentro e fora de portas. Com este passeio afetivo, conhecemos um Rio que porventura desconhecíamos e entendemos melhor a escritora que, na sua missão, desenhou uma ambição maior para todos nós: «todo ser humano é responsável pelo mundo inteiro».
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