Afonso Cruz é dos escritores mais originais que li. Por uma razão muito simples: transportou-me para universos dos quais nunca tinha ouvido falar. Ao contrário dos comuns mortais, sai por completo dos lugares comuns. Há muito, por isso, que não tinha tanto gozo na leitura de um romance, como aconteceu com Para onde vão os guarda-chuvas, um dos títulos mais elucidativos da obra de Afonso Cruz que, com elegância e tão subliminarmente, faz uma homenagem ao amor e à tolerância.
Um muçulmano, dono de uma fábrica de tapetes, assiste à morte do seu próprio filho. Três soldados americanos entram-lhe pela casa de rompante, disparam e acertam em cheio na criança. O muçulmano, de nome Fazal Elahi, logo põe em marcha um plano de recrutamento de ideias que o ajudem a ultrapassar a incomensurável tristeza e o inefável sentido da perda, apregoando ao dono da melhor ideia a entrega da sua enorme fortuna. Surgem-lhe centenas de pessoas a bater-lhe à porta com toneladas de soluções, de onde saiu vencedora a possibilidade, apresentada por um hindu, de nome Nachiketa Mudaliar, de adotar uma criança americana. E assim fez o muçulmano.
Embora o título do livro traduza uma declaração afirmativa, Para onde vão os guarda-chuvas (sem qualquer ponto de interrogação) encerra uma pergunta que, de tão tola no seu significado literal, nunca a fazemos, mas que remete de facto para o tipo de objetos que perdemos com frequência sem nunca averiguarmos o seu destino ou paradeiro ou sequer os reclamarmos de volta. E é desta forma metafórica que Afonso Cruz, com inteligência e argúcia, trabalha o tema da perda (personificado na morte do filho de Fazal Elahi), ao qual é capaz de atribuir beleza e, daí, retomar a importância do perdão (personificado na adoção do rapaz americano). Agarrando-se a um fio condutor exigentíssimo: a aproximação e/ou o afastamento de diferentes religiões (cristianismo, islamismo, judaísmo e hinduísmo).
Com a complexidade da vida, Afonso Cruz faz ao longo de toda a narrativa uma analogia com o emaranhado dos tapetes da fábrica de Fazal Elahi. Como se a manta de retalhos ou o mosaico que vemos nos tapetes tradicionais muçulmanos pudessem, afinal, ser equivalentes à diversidade da vida. E com a mesma arte com que os artesãos constroem tapetes, Afonso Cruz introduz nesta sua história personagens repletas de simplicidade e, ao mesmo tempo, desmedida criatividade. Uma criança que ambiciona voar como um avião, uma mulher que pretende contrair matrimónio com um homem de olhos azuis, um mudo que é poeta e que através das próprias mãos diz tudo, um galo de luta materializado num general russo, uma mulher com cabelos a esvoaçar a partir de uma gaiola, um indiano atestado de paixão e, até, um rapaz que dentro da sua boca concentra todo o universo. É dose.
Como se tudo isto fosse insuficiente, Afonso Cruz prenda ainda os seus leitores com “Fragmentos persas”, através dos quais salpica o livro com ensinamentos de cunho filosófico de sua lavra, e uma “História de Natal para crianças que já não acreditam no Pai Natal”, com ilustrações da própria autoria. Sim, para além de escritor, Afonso Cruz é ilustrador, cineasta, músico, produtor de cerveja. E não me venham dizer que quem todos os instrumentos quer tocar… não se aplica a Afonso Cruz. É, muito provavelmente, um dos autores mais completos da atualidade.
Para onde vão os guarda-chuvas segue a mecânica de um tabuleiro de xadrez, que o autor mostra pelo meio dos textos recorrendo a fotografias com a sua assinatura. Nesse tabuleiro de xadrez, vai sendo retratada toda a dinâmica que existe entre o bem e o mal, com vantagem para o primeiro que, não eliminando o segundo, está talhado pelo menos para o absorver e diluir.
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