Pedro Proença
PPedro Proença, uma das figuras mais completas da cena artística e intelectual portuguesa, inaugura no próximo dia 25 uma exposição de pintura na Casa Fernando Pessoa, por ocasião das comemorações do centenário da publicação da revista Orpheu, em 1915. Em plena preparação do evento, deu-me a honra de ver em primeira mão alguns dos quadros que integram a exibição. No seu espaço de trabalho, com cheiro bem fresco a tintas e materiais plásticos acabados de aplicar, telas de generosas dimensões já em pose de galeria e uma enorme dose de generosidade, Pedro Proença perspetivou a sua vida artística e a vocação provada para as tantas artes em que já se notabilizou. Vive e trabalha em Lisboa. Quando nasceu em 1962, em Angola (Lubango), tinha sido espoletada a Guerra Colonial fazia pouco tempo e, em Lisboa, fazia-se respirar a crise académica de 1962, um dos principais pontos de conflito entre estudantes universitários e o Estado Novo. Motivos de interesse e inspiração para Pedro Proença que, na sua atividade artística, não seguiu certamente indiferente face aos acontecimentos internos e externos do seu tempo. Frequentou o curso de Artes da Escola Superior de Belas Artes de Lisboa. Antes do ensino superior, porém, surgiu uma queda para o desenho que viria a estar na base de outras artes em que Pedro Proença se distingue para além da pintura e das artes plásticas: a criação de letras para computador, a digitalização de alfabetos, a ilustração de coleções de cartas, a tradução de célebres publicações, como a Bíblia. Expõe com regularidade desde 1981 e, em 1984, abriu portas à sua primeira exposição individual. A primeira de muitas. Em 1982, fundou o Movimento Homeostético ao lado de artistas sobre quem ainda hoje fala com orgulho. Nos seus quadros podemos ver uma confluência estilística que absorve diferentes referências históricas e civilizacionais (com preponderância para a cultura grega, a idade média e as sociedades chinesa e indiana) e, simultaneamente, jogos de formas a fazer lembrar o universo da programação informática. Não inventou a roda, mas é um criador de formas. Como se não bastasse, fica também a dever-lhe a música. Pedro Proença toca guitarra com as mesmas mãos que dão ainda vida à escrita e que publicaram, entre outros, A Arte ao Microscópio (Fenda, 2000). No seu olhar maduro, fica a sugestão ofegante do muito mundo que tem e já viu… e ao mesmo tempo daquele que ainda quer ver. Para falar sobre essa e outras inquietações e a revelar os trunfos da sua nova exposição de pintura, Pedro Proença está Entre Vistas com revelações surpreendentes sobre os colaboradores de Orpheu.
Está a preparar uma nova exposição, desta vez na Casa Fernando Pessoa. Trata-se de uma mostra comemorativa do centenário da publicação da revista Orpheu [dois únicos números, publicados nos dois primeiros trimestres de 1915]. Que Pedro Proença vamos encontrar aqui?
Para mim, esta exposição faz muito sentido, porque volto passados 18 anos a expor na Casa Fernando Pessoa. E festejar o centenário da revista Orpheu, que é o propósito desta exposição, é um privilégio para mim. Orpheu foi provavelmente o evento cultural mais importante do século XX português, porque se conjuraram nele alguns dos maiores poetas do século XX, como Fernando Pessoa (é o caso mais emblemático), Mário de Sá-Carneiro, Almada Negreiros (embora na altura fosse sobretudo caricaturista, ainda sem uma obra pictórica muito desenvolvida), Santa-Rita Pintor (um jovem promissor mas cuja obra, queimada pela sua família, praticamente desconhecemos) e Amadeo de Souza-Cardoso (que infelizmente morreu cedíssimo, com 31 anos de idade e uma obra notável). Portanto, o artista que vamos encontrar nesta exposição resulta da relação que eu tive (e que recuperei para este efeito) com este núcleo de autores quando era adolescente, altura em que escrevi umas tantas coisas alusivas ao período de Orpheu, que me fascina. Para preparar esta exposição, fui então revisitar esses meus textos…
Que tinha ainda guardados…
Sim, sim! E é incrível como esses textos me ajudaram a construir a minha própria forma de me relacionar com o mundo. As teorias de Pessoa da pluralidade do eu, a sua multiplicidade de sentir as coisas, o seu sentir tudo de todas as maneiras… influenciaram decisivamente a minha predisposição para sentir coisas. E, agora que estou particularmente concentrado no Amadeo de Souza-Cardoso, reparo como nele existe, embora aplicada à pintura, a mesma pluralidade de Pessoa. E é uma pena que tenha havido uma hostilidade enorme ao grupo de Orpheu. Foram ridicularizados, achincalhados… E o facto de estas figuras terem depois ido desaparecendo progressivamente criou uma espécie de orfandade cultural em Portugal, retomada de alguma forma com o tempo, mas de forma muito suave, sem a mesma expressão. Portanto, para preparar esta exposição, fui pegar nos filões que havia na época, quer na literatura, quer nas artes plásticas.
E… não encontrou mais nada com a qualidade de Orpheu?
Nada! O que é que estava a acontecer nessa altura no Mundo? Ora, 1915, o ano em que a revista Orpheu saiu, foi um período muito difícil, atravessado pela Primeira Grande Guerra… Ao nível cultural, não me parece que tenha aparecido nada comparável com a revista Orpheu. Nos EUA, na Rússia e em França ainda surgiram umas aproximações, mas nenhuma com a qualidade dos colaboradores da nossa. E depois com a vantagem, para nós, de termos um Pessoa, que é um mundo e que, com o passar do tempo, tem uma projeção mundial cada vez maior. Ele é único, até pela capacidade de colocar o leitor a questionar-se a ele próprio. Uma das coisas mais extraordinárias que ele questiona, por exemplo, em relação aos textos sagrados, é: «Se uma interpelação for inspirada será que não tem tanto valor como se fosse autêntica?». Em Pessoa há também o lado da criatividade, que me parece que ele explora muito bem e que se materializa em grande parte nos seus «e se calhar» e «por que não?». Vamos experimentar isto, vamos divergir de nós, vamos pôr-nos no papel de outro, vamos… É esta interpelação que Pessoa nos faz: desmultiplicar e abrir possibilidades. Adicionalmente, na preparação deste trabalho, fui ainda recuperar Picasso, essa figura incontornável que hoje em dia está a ser revalorizada, curiosamente, nos centros literários. O Picasso escritor que fazia na escrita o que fazia na pintura: escrevia, mudava a ordem, substituía, voltava a escrever, rasurava e de novo escrevia, num processo arrancado à pintura. E é engraçado como a forma como Picasso experimentou a escrita está muito colada ao intersecionismo de Pessoa…
Inéditos de Pedro Proença
Com qual das figuras de Orpheu mais se identifica?
Confesso que estou mais próximo de Fernando Pessoa. Tenho algumas críticas a Almada Negreiros, que é um artista que admiro bastante. Mário de Sá-Carneiro, uma pessoa esfusiante e uma referência sobretudo para os surrealistas, mas que acho que acaba por ser um pouco mais datado. Fernando Pessoa, sobretudo na sua vertente de Álvaro de Campos (Alberto Caeiro não aparece no Orpheu, embora lá esteja por trás), continua a ser incontornável. Porque ele fala afinal das situações e dos temas mais mundanos, que acontecem com todos… Para além das figuras de Orpheu, surge central o próprio nome de Orpheu com a sua componente mitológica, certamente, mas também com uma tradição referente, por exemplo, à música, à noite, à escuta. E é este sentido que também vou querer incorporar nesta exposição. No fundo, interessou-me para esta exposição fazer algo relacionado com todas as artes, o espetáculo, a música, a escrita, a imagem, a escultura…
Ou seja, trata-se de uma síntese do próprio Pedro Proença, que é um artista tão completo…
Eventualmente [gargalhada]! Umas das coisas que me interessa é, além das pinturas em que estou a trabalhar, perceber as ligações entre Amadeo de Souza-Cardoso, Almada Negreiros, Santa-Rita Pintor, etc., e as ligações entre eles e a minha própria forma de pensar. A verdade é que estes artistas deixaram uma tradição em muitos dos artistas de hoje, nomeadamente os da minha geração, como o é Pedro Casqueiro, que herdaram por exemplo a ideia de espaço de Amadeo de Souza-Cardoso, que é complexa, interseta o abstrato com o figurativo e cria ambiguidades estranhas. Helena Vieira da Silva tem igualmente um pouco a ver com isto. E esse intersecionismo, de que também Fernando Pessoa falava, alude a coisas estranhas, mas que se constituíram como importantes filões artísticos e culturais que me apeteceu valorizar nesta exposição. Espero, até, de alguma forma, que venham a dar frutos no futuro (não sei como!)…
O Tintin foi uma das melhores escolas de formação que a minha geração teve. O seu duplo lado lúdico e pedagógico dava-nos muita informação.
Depois de mais de 30 anos a expor com regularidade, como é que prepara uma exposição? Foi acertando o método ou é sempre um trabalho de criatividade completamente novo?
É difícil responder à sua pergunta! As exposições e os projetos são pedidos às vezes em função de algumas coisas e surgem como solicitações expressas. E, apesar de em alguns momentos não ter estado tão inspirado ou mentalmente disponível, cumpri sempre os calendários de todos os projetos que me propuseram. E, depois, há teorias que a pessoa tem sobre o seu próprio trabalho… Há um filão, por exemplo, que remete para o desenho a preto e branco e coisas de aspeto alegórico, com as quais o meu trabalho costuma ser identificado. Pode haver anos em que não trabalho neste filão, mas por vezes gosto de retomá-lo em jeito de revisionismo para manter uma série de redes e de possibilidades em aberto. Depois, há ainda trabalhos em que misturo tudo, esses desenhos e outras séries que desenvolvi. Uma vez, para uma exposição que fiz no CCB, estive a estudar os pintores setecentistas, as formas que usavam… e acabei por entrelaçar vários aspetos e inspirações. Às vezes resulta tudo numa grande misturada! Mas o mundo é mesmo assim, é vasto. E, por isso, reutilizo várias coisas. Certas vezes, sou mais experimental. Outras vezes, sou menos experimental. E ainda há casos em que utilizo digitalizações, transparências ou tipografia criada por mim para fazer obras de arte. O que não quero é tornar-me estanque. E, nesse prisma, procuro responder às solicitações que surgem e tentar fazer da melhor maneira.
Os seus trabalhos de pintura já integraram algumas das galerias mais conceituadas no país e no mundo. Em qual gostou mais de estar?
Prefiro não responder (não me parece que os galeristas gostassem de ouvir!). Tive obviamente experiências menos boas, mas a verdade é que, genericamente, crio uma empatia com as pessoas com quem trabalho. E tenho tido a sorte de trabalhar com galeristas de que gosto.
Nasceu numa década historicamente rica e complexa (anos 60). O que é que herdou dessa época para o trabalho artístico?
É mais uma vez uma boa pergunta. Tive o privilégio de crescer numa família que, embora não tivesse muito dinheiro (apesar de o meu pai – que morreu quando eu tinha 9 anos – ter sido médico e de estar então em ascensão social), se relacionava com muitas pessoas ligadas ao meio cultural cuja presença em nossa casa, assídua, acabou por me influenciar. A minha vivência da cultura Pop decorreu precisamente durante a década de 1960, até o meu pai morrer, em 1972. O meu pai era um psiquiatra/psicoterapeuta muito experimental e eclético – lia tudo – e acabou por me passar de uma forma muito forte este background. Acabei por receber uma cultura muito sincronizada com o que se passava até nos EUA, nos meios mais liberais. Que me ficou!
E a Guerra Colonial?…
Eu nasci com a Guerra Colonial e em função dela. Fui, aliás, “fabricado” em Luanda e nasci no Lubango (na altura Sá da Bandeira), uma cidade que foi colonizada por madeirenses, que se mantém praticamente igual ainda hoje (pelo que me dizem!). A guerra começou em 1961 e o meu pai foi logo chamado… Ao todo, eu devo ter vivido por lá uns oito meses. E nunca mais lá voltei.
Na sua obra identificamos influências orientais, nomeadamente das civilizações chinesa e indiana. Que lugar atribui a Angola, o país em que nasceu?
Bom, eu tenho uma grande empatia com a arte africana. E se há arte em África! Aliás, há tantas artes diferentes em África, com as quais eu me identifico… Quanto à Índia, onde estive um mês, representa de facto algo de que eu gosto e transporto para a minha obra: as cores fortes, os cheiros e as especiarias. Já a China remete para uma cultura antropológica completamente oposta mas que também me fascina. Na Índia, por exemplo, a vertente do sagrado compadece-se com a oferenda diária de laticínios, daí a vaca ser para eles sagrada. Na China, ao contrário, há um culto da subtileza, da valorização do vazio e do sem sabor. Na Índia, a obsessão com a renúncia, inclusive à família, pode ser integrada como se fosse possível viver algo quase antissocial, mas que acaba por ter as suas regras. Já na China, a unidade basilar é a família, pese embora a introdução do budismo na China. Ora, na pintura chinesa, o que vemos são os cinzentos. Na Índia vemos a cor, a cor, a cor. E tudo isto me chama! Mas, adicionalmente, também me revejo na cultura do Médio Oriente.
(…) Jesus é uma figura que suscita várias interpretações… Mas o que é preponderante nessa figura, para lá dos atos milagrosos, é o exemplo humano.
Voltando atrás… Não nasceu entre artistas, mas cresceu num meio cultural muito estimulante, entre católicos progressistas (como à época se chamava). Fale-me um pouco mais desse ecossistema?
O meu pai, lá está, estava rodeado de pessoas ligadas à literatura, ao pensamento e ao cinema. Posso exemplificar: António Alçada Baptista (a pessoa mais próxima do meu pai), Nuno Bragança, Maria Belo (minha madrinha), João Bénard da Costa (que esteve à frente da Cinemateca), Edgar Morin (filósofo). A partir dos anos 60, os meus pais estiveram ligados ao movimento católico, também integrado por Jorge Sampaio, por exemplo, e alguns padres. O meu pai, aliás, quase, quase que foi para padre. Mas fugiu para a psicoterapia e manteve-se na sua vocação de querer salvar almas [gargalhada]!
Fala muito do seu pai… O que herdou da psicoterapia para a sua obra?
Falo muito, porque foi uma experiência curta, mas determinante. Eu considero que um dos papéis da arte é beber daqui e dali… John Cage [músico e compositor norte-americano] falava, relativamente à música, da acalmia do espírito. Não vou dizer que tenha de ser de uma maneira ou de outra. Mas, para mim, há na arte e também na psicoterapia um lado de libertação, relacionado com a nossa abertura aos sentidos. Não há aliás nenhuma experiência de liberdade que não tenha a ver com a abertura dos sentidos…
Foi recentemente publicado um livro de José Tolentino Mendonça, A Mística do Instante, que fala precisamente nessa abertura dos sentidos que é sugerida desde logo na Bíblia…
Bem, também posso referir-me à Bíblia, porque a verdade é que tentei traduzir parte do Antigo Testamento, apesar de todas as dificuldades que encontrei. Atenção, tentei traduzir parte da Bíblia de Ferrara, publicada em 1553. Nesse texto há uma pontuação esquisita. Sentem-se os ritmos, os ritmos do falar, mas temos de ser nós a redescobri-los, vocalizando, criando respiração, dando espaço para que as coisas se tornem muito mais concretas. Esta versão revela-me várias coisas, nomeadamente uma linguagem ibérica comum, que é o ladino, algures entre as línguas portuguesa e espanhola dos séculos XII/XIII. Uma das ideias mais extraordinárias que esta versão da Bíblia nos dá – e que é uma implicação teológica por excelência – é sobre como Deus se define a si próprio. Tradicionalmente, a tradução que se oficializou para a resposta a esta questão é: «Eu sou o que sou». Mas esta tradução parece-me bastante estática, porque nas palavras hebraicas não há distinção entre o presente e o futuro, trata-se de uma propensão. Será, porventura, qualquer coisa entre o que estou a ser e o que serei… A tradução de Ferrara opta pelo “serei o que serei”, sem insistência do “eu”. A definição de Deus acaba por ser, afinal, sobretudo uma predisposição para ser. Ainda hoje escrevi um post que dizia, a propósito disto, que a memória é do presente e isso é uma coisa que não podemos negligenciar.
É um homem de fé?
Bem… Tal como Fernando Pessoa, tenho dias em que estou mais virado para uma coisa e outros em que estou mais virado para outra… Em todo o caso, acho que há coisas estranhas no mundo e, acima de tudo, tenho convicções. Sou um homem de fé com certeza, mas estou também aberto a uma dimensão de ateu, quase integrada com a ética que tenho e que não andará muito longe do próprio catolicismo ou do budismo, na medida das várias zonas de confluência… Mesmo Jesus é uma figura que suscita várias interpretações… Mas o que é preponderante nessa figura, para lá dos atos milagrosos, é o exemplo humano.
(…) fui de facto regularmente à [Fundação Calouste] Gulbenkian assistir aos Encontros de Música Contemporânea, tinha os meus 16 anos. Quando ia aos concertos “normais” da temporada lá estava eu no meio das senhoras muito perfumadas!
Falou-me agora da sua atividade de tradutor, mas o seu nome assina tantos outros trabalhos, nomeadamente o livro A Arte ao Microscópio (Fenda, 2000). Em que tipo de trabalho publicado se revê mais?
Não me revejo propriamente mais nuns do que noutros. Sempre escrevi muito e interesso-me sobretudo por ensaios. Esse livro a que se refere, A Arte ao Microscópio, é precisamente um ensaio, embora seja muito eclético e mergulhe num estilo também ficcional com recurso a algumas alegorias. De facto, é um livro em que investi muito e em que mais uma vez misturei diferentes géneros, um pouco a brincar.
Foi também a brincar que fez uma incursão pelo tarot?
[Gargalhada]! Um dia pediram-me para fazer a ilustração de um tarot e eu aceitei! Devo dizer que nunca lancei o tarot, nem sei propriamente como funciona, mas tudo o que tem a ver com cartas interessa-me. Acima de tudo, sou um curioso nato. Gosto de coisas peculiares. Uma das minhas invenções privadas – e isto é uma coisa que digo aqui pela primeira vez – foi a identificação de um sistema, não binário, mas baseado em três forças. Ora, durante muito tempo, investi precisamente nesse sistema. Passados uns tempos, vim a descobrir que os chineses já o tinham inventado, julgo que no século I, por um poeta, que faz uma espécie de versão triádica do I Ching. E lá fui eu dar de caras, de novo, com a cultura chinesa…
Voltando novamente atrás… No final da década de 1970, ia com regularidade à [Fundação Calouste] Gulbenkian assistir aos Encontros de Música Contemporânea. Daí ficou um fundo musical que percorre os seus trabalhos…
A minha sensibilidade para a música vem dos anos 60. Na minha infância ofereceram-me uma flauta e uma guitarra e fui aprendendo tudo sozinho. Vá, mas confesso que a determinada altura tive umas aulas com o Luís Represas… ensinou-me uns acordes! Agora… a ler música aprendi sozinho, fui ensaiando nas férias e, apesar de algumas deficiências técnicas que ainda hoje tenho, fui sempre aprendendo com uma grande facilidade. Em relação ao que eu ouvia, sofri obviamente a influência dos temas mais fortes dos anos 60/70, nomeadamente de Zeca Afonso, e depois fui-me familiarizando com a música clássica. E fui de facto regularmente à [Fundação Calouste] Gulbenkian assistir aos Encontros de Música Contemporânea, tinha os meus 16 anos. Quando ia aos concertos “normais” da temporada lá estava eu no meio das senhoras muito perfumadas! Confesso que, por vezes, naquele ambiente tão sério só me apetecia era saltar ao eixo ou outra coisa qualquer. Mas foi a música clássica e contemporânea, de que efetivamente passei a gostar, o que me abriu horizontes também para a pintura e as artes plásticas. Gosto sempre de passar os pressupostos e até os métodos de umas artes para as outras…
Foi para a Sociedade Nacional de Belas Artes pelo infortúnio de não ter conseguido entrar em arquitetura…
É verdade! E essa foi uma sorte na minha vida! Numa família prudente como a minha, preferiam que fosse para arquitetura. Reuniam-se inclusive em casa dos meus pais vários arquitetos conceituados, ao ponto de eu ter sido mesmo muito aliciado para seguir a área. Eu gostava, por exemplo, dos palácios do Renascimento, pelos quais fiquei impressionado quando uma vez fiz uma viagem a Itália… Mas daí ter uma apetência especial para seguir arquitetura… E quis o destino que o meu percurso fosse diferente. Na Sociedade Nacional de Belas Artes, conheci uma pessoa determinante…
João Vieira… que tem responsabilidade certeira na sua opção pelas artes plásticas…
Sem dúvida. Foi um professor que, em determinado momento, me disse: «Você, ou vai para artista e será um grande artista; ou vai para publicitário e ganhará muito dinheiro». E eu pensei: «Eu quero é ser um grande artista!». [Gargalhada]! Não sei se sou um grande artista, mas de facto essa deixa deu-me de certa forma uma grande autoconfiança. Sobretudo porque na altura tinha uns 18 anos! E, fruto de conversas que tive com o Prof. João Vieira, acabei por decidir com o filho dele, Manuel João Vieira, criar um grupo: o movimento neocanibal. O órgão central deste movimento era a revista, que também inventámos, designada Homeostética. A mesma que deu origem a uma exposição e a um outro movimento que criámos, o Movimento Homeostético, que resultou da confluência de experiências rurais e urbanas, a marca da Guerra Colonial, a força revolucionária, a teoria da complexidade e os fragmentos diversos das nossas vidas até então.
Esse movimento foi de alguma forma o Orpheu dos anos 80?
Não posso dizer que tenha sido, porque éramos miúdos. Havia sobretudo em nós a vontade de trazer à tona certos manifestos. E um dos formatos a que recorríamos era a banda desenhada, uma das minhas paixões. A banda desenhada, de resto, faz parte do imaginário de qualquer um de nós, penso eu. Quem não leu a revista Tintin? O Tintin foi uma das melhores escolas de formação que a minha geração teve. O seu duplo lado lúdico e pedagógico dava-nos muita informação. O Asterix, por exemplo, é de um humor profundamente inteligente que acabou por influenciar a nossa forma de olhar para o mundo.
O que perdura hoje do Movimento Homeostético?
Em termos técnicos, o grupo funcionou entre 1982 e 1986. Havia em quase todos nós uma apetência performativa, uma vontade de fazer coisas. O que perdura hoje? Talvez o sentido crítico de cada um de nós… Como se vê, por exemplo, nos Ena Pá 2000, que o Manuel João Vieira integra.
Participou nas candidaturas a Presidente da República do Manuel João Vieira. Que balanço faz dessa “paródia” (à qual já se referiu)?
Aquilo começou por ser uma brincadeira com o Pedro Portugal, um homem muito pragmático, e o próprio Manuel João Vieira, um homem completamente lírico. Tudo começou por ser uma brincadeira para ser online. Mas o Pedro encaminhou as coisas para que a candidatura fosse efetiva. O meu contributo passou apenas por escrever alguns discursos, ter umas ideias, nomeadamente o slogan da candidatura: “Só desisto se for eleito”. É um fantástico paradoxo… Se calhar, eu até tinha algum jeito para a publicidade! Aliás, uma das coisas que o nosso Movimento Homeostético cultiva é precisamente o paradoxo e o pós-paradoxo. E, de resto, uma das coisas que aprendi nos livros que o meu pai me deixou foram os paradoxos pragmáticos. O Manuel João Vieira também teve uma ideia paradoxal que valorizo muito: «É fugindo que nos encontramos». E nós vivemos exatamente deste tipo de construções e desconstruções… Parece-me que o facto de termos esta visão mais alargada é uma coisa boa!
Pegando nessa visão alargada… Qual é o papel do artista na sociedade?
A minha resposta é banal… A forma perversa e estereotipada como é feito o ensino em geral cria seres pouco críticos e interventivos. Se calhar, devíamos apostar mais na criatividade e no papel das artes, como forma de fazer abrir os sentidos e levar à libertação que nos põe em contacto com o maravilhoso, o absoluto. O absoluto que está no próprio quotidiano, na experiência do dia a dia. Que nos faz avançar mesmo que não saibamos para onde. As artes melhoram certamente a cabeça das pessoas. Eu seria incapaz de estar longe do mundo, como fazem porventura os ascetas (porque isso significa uma demissão das dificuldades). Mas, atenção, um certo recolhimento é necessário e as artes também o promovem.
Já o ouvi dizer: «(…) sou um artista tão miserável como os outros… mas sou feliz!». Do seu ponto de vista, o que é a felicidade?
Não me lembro de ter dito isso [gargalhada!]. Bom, a felicidade está ligada ao entusiasmo, à capacidade de nos abrirmos mais aos outros, embora por vezes também devamos proteger-nos do exterior dada a agressão que por aí abunda… Mas a felicidade é sobretudo a capacidade que temos de nos maravilharmos com tudo o que está à nossa volta. Sendo o mundo cruel (porque o mundo tem efetivamente muitas coisas cruéis), a felicidade é de facto o culto ou a alegria ou a capacidade de continuarmos a aceitar a maravilha que nos é oferecida a cada momento.
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