Porquê Este Mundo consiste numa das perguntas mais relevantes que Clarice Lispector se fez. Na tentativa de perpetuar aquela que seria uma das suas maiores interrogações, Benjamin Moser (1976-), norte-americano especialista em Clarice Lispector, chamou-a para o título da biografia, que assina, com a história da “figuraça” da literatura brasileira, cuja obra traduz para o inglês. Este ano, no meu aniversário, a mesma biografia foi-me oferecida, numa tradução para o português a cargo de Maria Beatriz Sequeira, para constatação da naturalidade e da elegância com que Moser interpreta a vida extraordinária e fascinante, não linear nem óbvia, de Clarice.

A vida da judia Clarice termina cedo, no dia 9 de dezembro de 1977, no contexto de uma doença cancerígena, fatal. Nessa data, de acordo com Moser, já era «uma das figuras míticas do Brasil», comparável com Kafka, Rilke, Rimbaud ou Heidegger. Tinha nascido no dia 10 de dezembro de 1920, numa Ucrânia incendiária, debaixo de uma guerra civil e com a sua mãe atirada a um inqualificável ato de violência perpetrado por pogroms. A brasileira naturalizada nunca regressaria a Tchechelnik, a cidade Natal. Entre hiatos sobre partes da sua vida e o sentido do mistério com que a própria se caracterizava, «nasceu uma mitologia», uma lenda maior do que Clarice.

Em 1922, os Lispector desembarcaram em Maceió, no nordeste brasileiro, onde permaneceram três anos, até rumarem ao Recife. E foi nesta cidade brasileira, no número 367 da Praça Maciel Pinheiro, que Clarice passou a sua infância. A mesma infância em que antes de aprender a ler e a escrever, já efabulava. Estava talhada para contar histórias. Aos 13 anos, consciencializou-se de que queria escrever, como se do destino se tratasse. A leitura de Machado de Assis, Monteiro Lobato ou Hermann Hesse, com o seu O Lobo das Estepes, foi determinante. Daí aos 23 anos, idade com a qual publicou o primeiro romance, Perto do Coração Selvagem, foi um tiro. Nessa fase, seria também detetável a influência de Espinosa. Mas, curiosamente, Clarice olhava para a escrita como uma atividade difícil, apesar do talento que sabia trazer. Por isso nos deixou esta reflexão: «Vocação é diferente de talento. Pode-se ter vocação e não ter talento, isto é, pode-se ser chamado e não saber como ir». Ainda assim, talvez por se sentir desde logo mais atraída pela verdade interior alcançada com a escrita, do que com «o mecanismo novelístico do enredo e das personagens», tenha sido certeiro para Clarice reconhecer na escrita o caminho.

Em 1935, chegava ao Rio de Janeiro. Dois anos mais tarde, estava a ingressar, «numa decisão extremamente invulgar para uma mulher», na Faculdade Nacional de Direito do Brasil. Clarice não era óbvia. Em nada. Estreou-se nas redações, como jornalista, também desafiando uma atividade profissional apenas atribuída naquele tempo a poucas, muito poucas mulheres, casos excecionais da poetisa Cecília Meireles ou da romancista Rachel de Queiroz. Mas uma feroz conciliação entre a exigência dos estudos e o trabalho árduo, a morte do pai e o amor incorrespondido do dramaturgo Lúcio Cardoso, homossexual, trouxeram a Clarice, em 1941, a primeira depressão que a hospitalizou. «No final do ano, já tinha recuperado o suficiente para começar um novo romance com um colega da Faculdade de Direito, Maury Gurgel Valente», com quem viria a casar.

Em 1944, Clarice e Maury Gurgel Valente chegavam a Belém do Pará para uma primeira experiência diplomática, que estaria na base de quase duas décadas fora do Brasil – com residência em Nápoles, Berna, na Riviera Inglesa e em Washington –, ao serviço do Ministério das Relações Exteriores, «conhecido por Itamaraty». Ao lado de Gurgel Valente, Clarice requintava aos poucos a posição de mulher de diplomata, destacando-se por dois fatores: ser das poucas com estudos superiores e oriunda de um meio humilde. O pouco para fazer, todavia, votava-a a um dificílimo tédio, desafiado com a leitura de alguns dos maiores da literatura, como Sartre, Rilke, Proust, Flaubert ou Virginia Woolf. De regresso ao Rio de Janeiro para uma curta estada, Clarice é surpreendida com o Prémio Graça Aranha, atribuído ao seu primeiro romance publicado, Perto do Coração Selvagem. Este reconhecimento ter-lhe-á atribuído também a impressão de que, a partir dali, passaria a poder escolher as editoras. Encontrava-se esmagadoramente enganada. Uma das suas obras seguintes, O Lustre, demorou até chegar à estampa. Mas uma permanência maior no Rio de Janeiro, mais tarde, permitiu-lhe voltar a enraizar a sua vida literária e a escrever, inclusive, para a publicação Comício, na qual por detrás do pseudónimo Teresa Quadros dava, para ganhar a vida, cirúrgicos conselhos de beleza. De regresso à vida diplomática, dessa vez para permanecer em Washington, Clarice sinaliza a sua segunda experiência de maternidade. Nesse momento, era já mãe de dois filhos: Pedro e Paulo Gurgel Valente. 16 anos depois de contrair matrimónio, porém, Clarice ousou abandonar um casamento pouquíssimo estimulante, ao qual sempre se referiu de forma inóspita, como se de um exílio se tratasse.

Em 1959, quando regressou definitivamente ao Brasil, Copacabana era já um lugar diferente, reservado à elite. Poucos anos mais tarde, em 1964, Clarice assistia nos escaparates à exibição do título que melhor responderia à sua maior exigência enquanto autora, A Paixão segundo G. H., um dos mais importantes romances do século XX brasileiro. Entre 1967 e 1973, Clarice redigiu a sua autobiografia ao publicar semanalmente uma crónica, que tanto se referia a assuntos políticos, como literários, como triviais, como a vida da empregada doméstica, sempre consigo no espelho.

Clarice provoca em nós, permanentemente, a feliz sensação de podermos pensar em alguma coisa pela primeira vez. E quão raro isso é. Clarice está fora de qualquer ortodoxia. «Ela tem uma amplitude de capacidades intelectuais que é quase demasiado alargada para ser completamente utilizada», ditou um dos psicoterapeutas contactados por Clarice. Para além de tudo, Clarice é uma pergunta permanente. Uma apologia da ignorância, enquanto detonador de um entendimento maior. Portadora de uma criatividade vulcânica e de uma «beleza régia». «Em meados da década de 70, a reputação de Clarice como génio excêntrico, mais ou menos inadaptado à sociedade, tinha assumido proporções lendárias», escreve Moser.

À TV Cultura, em São Paulo, Clarice deu a única entrevista à televisão, pedindo que apenas fosse exibida após a sua morte. Vontade cumprida. Em outubro de 1977, chegava às livrarias A Hora da Estrela, um monumento de genialidade. O seu último romance. Testemunha confirmada da sua enorme inteligência e sensibilidade. Da sua originalidade e singularidade. Clarice era apaixonada pelo vazio, ávida do futuro, genial, inclassificável. Dizia: «eu já estou no futuro». Tanto estava que, hoje, é intemporal. Inigualável. Nem comparável com… Clarice.

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