Por poucas coisas trocaria o sol deste fim de semana. E foi por uma delas que no final deste domingo me fechei no Pequeno Auditório do CCB, a meia-luz, para assistir à conversa de Anabela Mota Ribeiro com Eduardo Lourenço.

Há um consenso que diz que Eduardo Lourenço é o maior pensador/filósofo português vivo. O mesmo que gostaria de ter sido romancista. Como tem consciência de si mesmo, não tentou. Diz que «a mais alta ação é ser criador de qualquer coisa; essa é a nossa utopia». Alega que «somos as criaturas mais indigentes de toda a criação; só a poesia mais profunda pode ser mediador desse ser que nós somos». Converteu, pois, aquilo que poderiam ter sido os seus romances em belíssimos e tão necessários ensaios, que tanto nos amparam na construção da nossa visão sobre o ser português.

O mais velho de sete irmãos, prestes a completar 94 anos e com a maior lucidez: «não quero envelhecer, mas estou a correr para aí». Diz, até, estar «fora de prazo». Mas ainda hoje se interessa por tudo. Quase tudo lhe dá prazer. Em cima do palco, num diálogo olhos nos olhos com a magnífica Anabela Mota Ribeiro, embora sabendo-se rodeado de espectadores, seguiu raciocínio atrás de raciocínio sem um único pensamento remediado, sempre articuladíssimo, com rasgo e um sentido de humor eminente.

Pontuou em diversos momentos a conversa com a sua admiração por Pessoa e, à pergunta «o que lhe diria se se cruzasse hoje com ele?», respondeu prontamente: «Pessoa era tímido, mas eu, diante dele, seria ainda mais tímido». Segundo Eduardo Lourenço, para quem a definição e o lugar da Europa têm sido objeto de reflexão de uma vida, «Pessoa escreveu uma das obras que nos universalizou, que nos libertou do fechamento da nossa ditadura. Portugal foi Europa, antes de toda a outra Europa. Fomos os primeiros europeus a sair da Europa e a mostrar a Europa ao mundo. E, no meio dessa clarividência, estava Pessoa». O mesmo que inventou essa imagem extraordinária que são os heterónimos, os quais, afinal, todos temos, na aceção de Eduardo Lourenço.

Para lá de Pessoa (ou enquanto Pessoa…), a conversa foi seguindo a normal cronologia, com paragens obrigatórias, claro, na infância ou na memória dela. Uma das frases mais fortes que Eduardo Lourenço pronunciou nesta tarde foi, a meu ver, esta: «Tudo se passa na nossa aldeia». A dele é São Pedro de Rio Seco, a norte e bem no interior do país. «Tinha pessoas que só queriam era sair de lá. Solidão, vento, encanto, muita miséria escondida», descreveu Eduardo Lourenço. Foi ali que passou a infância e a juventude, sobre as quais recorda a importância que autores como Júlio Dinis tiveram nas suas primeiras leituras. Parece ter lido de tudo um pouco, até «autores menos apropriados para um adolescente», disse. «Eu lia tudo». Na casa onde viveu, havia uma mala onde seu pai guardava outros autores, como o brasileiro Coelho Neto, também com uma enorme influência sobre a prática de leitura de Eduardo Lourenço.

Pela sua entrega à filosofia, percebe-se porque deixou para trás uma possível incursão pela carreira militar. Foi estudante do Colégio Militar, é certo. Mas rapidamente percebeu que, na qualidade de homem de ideias, interessado por tudo, espantado com o mundo aí a decorrer, só poderia enveredar pela filosofia. O que se seguiu ao Colégio Militar foi Coimbra, onde se pôs a braços com, lá está, a filosofia, na posse da consciência de que «os filósofos são aqueles que sabem que não sabem, aqueles que não sabem para onde vão e, por isso, vão para filosofia».

A educação literária no colégio militar não tinha sido a mais apetecível. Quando chegou a Coimbra, todavia, viveu uma espécie de turning point: cruzou-se com um colega que lhe perguntou o que andava a ler. Respondeu-lhe: «um romance, Nossa Senhora de Paris, de Victor Hugo». E o colega disse-lhe: «esse não é romancista. Eça é que é». A partir daí, passou a ler Eça sempre. Depois de Coimbra, rumou a França, à Alemanha, numa altura em que sair de Portugal e atravessar os Pirenéus com destino a França era um verdadeiro deslumbramento. A propósito da saída do seu país, aliás, cimentou uma das suas melhores frases deste encontro: «o mundo real começa quando saímos de nossa casa para encontrar os outros».

No caso de Eduardo Lourenço, tinha terminado o seu tempo de assistente em Coimbra e, perante uma oferta que lhe surgiu para aceder a uma bolsa, não sabendo o que havia de fazer mais, foi. Em qualquer um dos lugares, foi polindo a sua consciência sobre a Europa. A mesma Europa que foi sempre o continente modelo, a referência. Também a mesma que, de repente, passou a ser contestada por aquilo que parecia ter de exemplar. «Desde o ataque às torres, a Europa vive um problema crepuscular», diz. Para o filósofo, ainda assim, «a história deste continente é, afinal, uma permanente guerra civil desde os romanos. Mas, hoje, a instigação que nos é feita é maior, trata-se de um desafio cultural inédito na história da Europa e do mundo».

Pelo meio, aceitou um convite para dar aulas de filosofia em Salvador da Baía, onde também viveu. Por lá, cruzou-se com Jorge Amado, que tinha vindo do Rio onde estivera a promover o seu famigerado Gabriela Cravo e Canela. Por lá, ainda, houve quem lhe tivesse recomendado João Guimarães Rosa, que ainda hoje lê e admira. Logo aí leu Grande Sertão: Veredas. Do Brasil, contudo, diz: «Eu gostei do Brasil a título póstumo, quando de lá saí; se tivesse lá ficado mais uns meses, talvez não tivesse de lá saído».

Um dos títulos de Eduardo Lourenço que marcou de forma sísmica o pensamento português e a perceção sobre o mundo foi, desde logo, a sua primeira obra publicada: Heterodoxias (1949). Com ela, deixou uma marca indelével num Portugal à época tão ortodoxo, fechado e encerrado sobre a sua ditadura. Mas, de acordo com o autor, «a nossa vocação humana é a ortodoxia, a verdade, a resposta ao que é intolerável nas heterodoxias». E sobre essa busca, não raras vezes, voltou à Europa nesta conversa sobre (quase) toda uma vida, lembrando que «temos de ter um discurso sobre nós próprios, sobretudo neste mundo globalizado, em que parece vivermos todos na mesma casa». O mesmo é dizer que não podemos, não devemos perder a nossa identidade, recorrendo a Jorge de Sena: «nascemos para participar na criação de um novo mundo».

Para lá chegarmos, talvez valha a pena um mergulho sobre nós próprios. Com a lucidez e a experiência de quem ultrapassou os 90, Eduardo Lourenço reposicionou as prioridades em mais uma das suas frases maiores: «O enigma somos nós mesmos; conhecemos aquilo que está fora de nós, que pode ser objeto de conhecimento; aquilo que está dentro de nós não nos é devolvido no espelho ou num retrato». E foi mais longe: «Fora do amor nada existe verdadeiramente importante».

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